Li Cong
Professora
RESUMO
O presente trabalho analisa as imagens existentes no poema <长恨歌> (Chang Hen Ge) do poeta Bai Juyi (701-762) e as estratégias de recriação dessas imagens na tradução para o português feita por António Graça de Abreu (1947-), “Canto do Remorso Perpétuo”, com bases nas categorias de imagens propostas por J.A. Cuddon (2013). Chang Hen Ge é um dos mais grandiosos poemas escritos no período da Dinastia Tang (618-907) e a pesquisa busca delinear e conceitualizar estratégias de tradução empregadas pelo tradutor Graça de Abreu para o acolhimento das imagens poéticas do poema de Bai Juyi em língua portuguesa, nomeadamente, estratégias de preservação, omissão, substituição, estrangeirização, anotação, entre outras. A investigação da tradução de imagens do poema Chang Hen Ge consiste em um apoio para futuras traduções da poesia clássica chinesa para o português.
Palavras-chave: imagens poéticas, poesia clássica chinesa, Canto do Remorso Perpétuo, estratégias de tradução, poesia chinesa em português, Bai Juyi, Graça de Abreu
Introdução
Sabe-se que a poesia é um conjunto de sons, formas e ideias. Quanto à poesia clássica chinesa, a imagem é considerada a parte mais vívida e bonita. As imagens poéticas contêm não só uma forma concreta, mas também os sentimentos abstractos e intangíveis. As imagens poéticas chinesas carregam fortes características culturais. Diferentes culturas podem compartilhar a mesma imagem, mas essa imagem pode simbolizar diferentes coisas em diferentes culturas. A conotação cultural das imagens na poesia clássica chinesa pode, por um lado, produzir alto valor artístico e, por outro, afectar o efeito de tradução com o seu carácter pictográfico único e rico. Por isso, se quiser uma tradução perfeita de um poema clássico chinês, deve reservar todos os factores de sons, formas e ideias, assim como analisar e apreciar bem as imagens ali existentes, baseando no conhecimento da cultura chinesa. Hoje em dia, o intercâmbio cultural fica mais importante e intensiva entre todos os países e aparecem mais e mais poemas clássicos chineses traduzidos para português, o que promove a divulgação da literatura e cultura chinesas. Tomando isso em consideração, o presente trabalho tenta fazer um estudo sobre a tradução das imagens nos poemas clássicos chineses em português.
Na China, a poesia clássica é geralmente considerada como a mais inspiradora e sublime de todas as formas literárias. A Dinastia Tang (618-907) é considerada por muitos autores como a “idade de ouro” da poesia chinesa, porque possui as mais brilhantes realizações culturais e literárias da história chinesa. Entre elas, destaca-se uma das obras-primas do poeta Bai Juyi, o poema Chang Hen Ge, a que é atribuído muita atenção tanto no tempo antigo como actualmente. Li Chen (810-859), o 16º imperador da Dinastia Tang, escreve no seu poema “Nénia para Bai Juyi” [吊白居易] que “até mesmo uma criança consegue entender Chang Hen Ge [童子解吟长恨曲]”. O poema é rico em imagens relativas com lugares, eventos históricos, alusões e contos populares que têm conotação cultural abundante. Para os leitores chineses, o poema não é um desafio, mas é uma tarefa dificílima para os que não estejam familiarizados com a cultura chinesa, para não mencionar a sua tradução para outras línguas tão distintas.
O trabalho tenta fazer uma interpretação de algumas imagens existentes nesse grande poema e estudar os métodos de reprodução e tradução delas para português baseando-se principalmente na tradução de António Graça de Abreu, que é um tradutor premiado pela sua contribuição na tradução de literatura clássica chinesa.
I: Bai Juyi e Chang Hen Ge
I.1. O poeta Bai Juyi e a Dinastia Tang
Imagem do poeta Bai Juyi.
A Dinastia Tang (618-907) possui as mais brilhantes realizações culturais e literárias da história chinesa e é considerada como a “idade de ouro” da poesia chinesa. O desenvolvimento da poesia clássica chinesa da Dinastia Tang “é dividido em quatro períodos: o início [初唐] (618-712), o auge [中唐] (966-826) e o final [晚唐] (827-908)” (Luo 1987:4). A poesia de Estilo Antigo (gutishi), de que Bai Juyi escreveu Chang Hen Ge, é uma das formas predominantes da composição naquela época e assinala-se pela ausência de coacções, ou na maior parte das vezes, pela deformação intencional dessas mesmas regras (François Cheng 2008). Mais concretamente, o Estilo Antigo caracteriza o poema tradicional, muitas vezes narrativo, normalmente apresentado em forma de versos regulares de quatro caracteres, ou versos regulares de cinco caracteres, ou versos regulares de seis caracteres, ou versos regulares de sete caracteres, assim como versos mistos que, quando se mesclam num mesmo poema, a maioria dos versos tem sete caracteres mas também há outros versos que podem variam entre três e onze caracteres. O Estilo Antigo não presta especial atenção à antítese e aos padrões prosódicos e, “[o] número de versos num poema [gutishi] é indefinido”, e pode haver apenas uma rima ao longo de todo poema ou mesmo várias rimas (J.Y. Liu 1962:24). Bai Juyi (白居易) (772-846), também transcrito em pinyin de cantonês como Po Chu-yi, Po Kiu-vi ou Pé-Kiu-i, é “um dos poetas mais influentes nos meados da Dinastia Tang” (618-907) (Yuan 1990:107). Nasceu em 772 em Xinzheng, uma pequena cidade no sul da Província de Henan. Filho duma família pobre mas culta, começou a compor poesia aos quatro anos de idade. Foi oficial e trabalhou em vários órgãos governamentais. Abraçou ideias confucionistas e apelou a um estilo simples e directo da literatura nos tempos bem anteriores defendendo que a poesia devia ser baseada na realidade e reflectir a situação da época, e escrevendo obras simples mas elegantes a fim de protestar contra os males sociais dos seus dias, incluindo a corrupção e o militarismo.
Escritor prolífico, fez cópias de suas Obras Completas que, segundo o poeta, “em 75 capítulos, compreendem 3.840 textos” (apud Abreu 1991:42). As obras são divididas pelo próprio poeta, numa carta longa que escreveu ao próximo amigo Yuan Zhen no ano de 815 (Kawai 2013:244), principalmente em quatro grupos em relação aos temas: poemas didácticos; poemas de quietude, contemplação e lazer; poemas de tristeza e outros poemas.
Escreveu com uma linguagem simples e directa e é dito que reescrevia qualquer parte de um poema que os seus servos fossem incapazes de entender. A acessibilidade das suas obras ganhou-lhe a grande popularidade tanto doméstica como estrangeira. De acordo com os estudos de Hisao Takamatsu (2012), as obras de Bai Juyi já foram difundidas e muito apreciadas no Japão e na Silla (actualmente a Coreia) quando o poeta ainda estava vivo. Hoje em dia, as suas obras não são apenas traduzidas para mais línguas estrangeiras, mas também adaptadas para outras formas artísticas, como peças teatrais, caricaturas e filmes, entre outras. Arthur Waley, um dos grandes tradutores de Bai Juyi para o inglês, diz que “Acho-o de longe o mais traduzível dos principais poetas chineses [I find him by far the most translatable of the major Chinese poets]” (apud Abreu 1991:35).
I.2. O poema Chang Hen Ge
I.2.1. Temática e contextualização do poema
Sendo uma das obras-primas de Bai Juyi, o poema tem como tema a história amorosa trágica entre Xuanzong (685-762), o sexto imperador da Dinastia Tang, e uma das suas concubinas, Yang Guifei. Foi composto de acordo com lendas e contos populares em 806, quando “ele estava a visitar o Templo de Xianyou (situa-se em actual Xi’an) com dois amigos” (Huang 2006:258).
Yang foi uma das suas muitas concubinas. Para mostrar o amor absoluto por ela, o imperador recompensou outros membros da família Yang com títulos e cargos, mesmo que eles não fossem talentosos. Tudo isso levou necessariamente o país ao caos. Por isso, houve a Rebelião do general An Lushan (755-763) contra o imperador, durante a qual este último ficou na fuga e a Concubina Yang foi estrangulada pelo exército por ser considerada como a origem da Rebelião. Com a ajuda do exército de fora da capital, o imperador esmagou a Rebelião e regressou para a Chang'an. Tinha muitas saudades de Yang, chorando sempre pelo remorso de ter perdido o seu amor da vida. Com a força supernatural, esse casal finalmente encontrou-se um com outro e prometeram estar sempre juntos onde quer que o outro estivesse. E o remorso do imperador continuava para sempre.
De uma perspectiva romântica, Chang Hen Ge é um poema de amor, contando a paixão trágica entre Xuanzong e Yang Guifei desde o início ao fim. No entanto, do ponto de vista realista, o poema é irónico, criticando a vida dissoluta do imperador Xuanzong que levou à decadência e declínio do país.
Chang Hen Ge é um poema longo mas não redundante, com versos notáveis que emergem de vez em quando e uma linguagem suave, fresca e comovedora, e conta uma história onírica inspiradora. Depois da sua composição, o poema popularizou-se de forma rápida, e tem influenciado a criação artística de várias obras na China nos tempos seguintes, tal como as peças de teatro da Dinastia Yuan (1271-1368). Por exemplo, “Wu Tong Yu (Rain on the Plane Trees), pelo escritor teatral Bai Pu da Dinastia Yuan, é umas das obras de adaptação que se baseiam principalmente em Chang Hen Ge” (Ni 2003:64). Além disso, o poema tem também impacto na literatura estrangeira, como por exemplo, a literatura japonesa. “Genji Monogatari”, que é uma das grandes novelas da literatura japonesa, “citou e absorveu de forma frequente Chang Hen Ge” (Shao 2011:114) e “concebe enredos de acordo com as ideias do poema de Bai” (Ibid.:119).
I.2.2. Breve abordagem formal do poema
O poema Chang Hen Ge é um extenso poema narrativo de Estilo Antigo, com 120 versos de sete caracteres cada. Uma das qualidades auditivas dos caracteres do chinês reside na “natureza monossilábica dos caracteres” (James J.Y. Liu 1962:21), por isso o poema heptassilábico tem no total oitocentas e quarenta sílabas. Mesmo que o chinês seja uma língua tonal, não há contrapontos tonais ou padrões prosódicos no poema e a rima varia a bel-prazer do poeta ao longo de todo o poema, visto que é de Estilo Antigo que não presta atenção a isso. Portanto, a musicalidade do poema é formada pelo conjunto de cesuras, os tons inatos de cada caracter, bem como uma grande variedade de rimas. Também não faltam ao poema os versos paralelos, que constroem dísticos belos, impressionantes e memoráveis.
I.3. “Imagens” no poema de Bai Juyi
Na China, o conceito da palavra “imagem” (yixiang em pinyin) é a combinação de yi (ideia) e xiang (forma). A partir do significado próprio de yi e xiang, pode-se entender de imediato que uma “imagem” já passa de ser apenas uma figura ou pintura objectiva e perceptível por via óptica, mas também conta com certo pensamento subjectivo e particular das pessoas.
Na verdade, no primeiro trabalho sistemático da crítica literária chinesa The Literary Mind and the Carving of Dragons [文心雕龙] que data do século V, Liu Xie (645-520) ressalta que, quanto à criação literária, yixiang transmite a ideia abstracta e interiorizada do poeta por via da forma artística concreta e exteriorizada (Yuan X.P., Meng E.D. & Ding F.1994:156-157). Por conseguinte, a imagem não se limita, desde a antiguidade chinesa, a descrever a forma concreta e visível de algo, mas como transmite o intangível que chega mentalmente, a ideia. Hoje em dia, Yuan Xingpei (Yuan 2009), um dos académicos que estudam a conotação do termo yixiang, defende que uma vez que uma forma entre no pensamento artístico do poeta, é processada pelo poeta a fim de atender o seu gosto estético e simultaneamente integrar os sentimentos. É mediante esse processamento que uma forma simples se torna numa imagem poética.
No ocidente, Thomas Hobbes também considera que a imagem não pode ser vista como apenas uma percepção separada do sentimento na mente, porque “sensações… são registadas na mente nas imagens” (apud. Yu Pauline 1987:7). Não é algo externo, objectivo e independente da existência do espectador. Não é o que há e deixa de ser uma presença racional. Ezra Pound (1913), influenciado pela poesia chinesa e japonesa, define brevemente a imagem como o que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo, enfatizando a fusão do objectivo e o subjectivo. Por isso, yixiang, ou “imagen”, sobretudo poética, compreende duas partes, a forma e os sentimentos. São um modo singular de apresentação do mundo, um modo mágico de olhar para as coisas exteriores e também interiores do poeta e de as expressar com o recurso de associação de imagens.
O poema Chang Hen Ge é rico em imagens poéticas, que são belas figuras que encarregam a cultura chinesa, impregnam os sentimentos do poeta e que podem evocar os sentimentos particulares dos leitores. E num país que possui uma história da poesia de centenas de anos, muitas imagens já se tornam fixas e usadas universalmente. No caso de Chang Hen Ge, para os leitores que têm pouco ou nenhum conhecimento sobre as imagens poéticas chinesas, não é difícil captar a essência da história, só que a leitura e a compreensão deles se identificam como superficiais. Em contraste, quanto mais imagens conhecermos e mais cultura chinesa que existe nelas soubermos, mais profundamente poderemos apreciar o amor do casal, o talento do poeta, assim como a beleza do poema. Por conseguinte, vejamos alguns exemplos das imagens no poema:
Original: 金/屋/妆/成/娇/侍/夜
Pinyin: jīn /wū /zhuāng /chéng /jiāo /shì /yè
Tradução interlinear: ouro/casa/ maquilhagem/pronto/mulher encantada/servir/noite
A expressão 金屋 jīn wū (casa de ouro) também tem a sua origem numa alusão. Quando o Imperador Wu (156 a.C. -- 29 de março de 87 a.C.) da dinastia Han (202 a.C -- 9) era jovem, ficou tão apaixonado pela prima A-Jiao. Disse que se se conseguisse casar com a prima, oferecer-lhe-ia uma casa de ouro como presente. Portanto, jīn wū é originalmente destinado a indicar as casas luxuosas e coloridas das mulheres e simboliza a paixão do homem pela mulher. Até hoje em dia, esté em uso o termo 金屋藏娇 (jīn wū cáng jiāo) na vida da população chinesa. O poeta colocou essa imagem no poema. É óbvio que o palácio onde vivia a concubina Yang não podia ser feito todo de ouro, mas com essa alusão e exageração, o poeta conseguiu enfatizar a paixão intensa e forte do imperador por Yang, o que pode ajudar os leitores a racionalizar o desenvolvimento contínuo da história.
Um outro exemplo de imagem no poema é relacionado com as próprias tradições sociais e costumes chineses, cuja existência resulta, muitas vezes, na diversidade de visões e atitudes sobre várias coisas na vida:
Original: 春/风/桃/李/花/开/日
Pingyin: chūn /fēng /táo /lǐ /huā /kāi /rì
Tradução interlinear: primavera/ vento/ pêssego/ ameixa/ flor/ desabotoar/ dia
Paixão exclusiva por Yang Guifei.
Tradução dos versos na imagem
feito por Abreu: Muitas as
mulheres bonitas no palácio
imperial, mais de três mil, o favor
imperial, outrora privilégio de
tantas, apenas um corpo o
recebe.
Há várias imagens neste verso: chūnfēng (vento na Primavera), táohuā (flor de pêssego), lǐhuā (flor de ameixa) e huākāi (florescimento). Aqui queria destacar a de táohuā, flor de pêssego. Segundo Qu (2009), foi desde o Livro das Cantigas que as pessoas começaram a reparar e apreciar a característica cromática das flores de pêssego. No Livro das Cantigas, a aparência da flor de pêssego é relacionada com a juventude das mulheres. Quando floresce, é bonita e graciosa como uma mulher jovem. Quando avela, a imagem sugere o envelhecimento das mulheres. Comparar as mulheres bonitas com as flores “é apresentação da relação tradicional de analogia e metáfora entre flores e raparigas belas” (Qu 2009:51). Além disso, na China também existem expressões como 桃花面(táo huā miàn), rosto como uma flor de pêssego, e 桃花妆 (táo huā zhuāng), enfeite de pêssego, que simbolizam erotismo e carnalidade, porque “a estação na qual florescem as árvores de pêssego é a temporada de casamento em que se unem homens e mulheres, o que aumenta o componente erótico original às flores de pêssego” (Ibid.:132). Por isso, neste verso o poeta não esteve somente a descrever o ambiente dos dias de encontro do casal Xuanzong e Yang, como também relembrou a beleza da concubina e o amor mundano entre eles.
Em suma, quando se fala na imagem da poesia chinesa, merece ter sempre na mente que não é apenas uma forma concreta e objectiva de um artigo, mas que tem uma conotação imaginária, às vezes cultural, um determinado sentimento e afeição subjectiva do autor ou do leitor. O que a mesma imagem implica pode sofrer de alterações depende do tempo, espaço ou de quem a vê. Através da análise sobre algumas imagens escolhidas do poema Chang Hen Ge que ou contém alusão, ou inspira imaginação estética, ficamos convencidos de que Bai Juyi é mestre em criar e utilizar imagens e vale analisar mais imagens de riqueza cultural e de qualidade elevada deste poema, bem como discutir sobre o efeito dessas imagens quando traduzidas para línguas estrangeiras.
II: “Canto do Remorso Perpétuo”
II.1. O tradutor António de Graça Abreu
António Graça de Abreu nasceu em 1947 no Porto, Portugal. Foi o primeiro português a viver no continente da China. Durante a sua estadia entre os anos 1977-1983 na China, foi professor de Língua e Cultura Portuguesa em Pequim e revisor e tradutor nas Edições em Línguas Estrangeiras de Pequim. Tem famílias na Província de Anhui e Província de Shandong e até hoje visita múltiplas vezes a China.
Tem imenso interesse em Sinologia e poesia clássica chinesa e publicou sucessivamente a sua tradução de chinês para português a peça de teatro chinês, O Pavilhão do Ocidente, de Wang Shifu (1260-1336), a antologia de poesia de quatro poetas, Poemas de Li Bai (701-762), Poemas de Bai Juyi (772-846), Poemas de Wang Wei (701-761), bem como Poemas de Han Shan (?-?), todos editados pelo Instituto Cultural de Macau. Ganhou o Grande Prémio de Tradução 1991 da Associação Portuguesa de Tradutores e pelo P.E.N. Clube Português, que é agência responsável pela nomeação anual do candidato português ao Prémio Nobel na área da Literatura. O esforço de tradução de textos chineses pelas culturas europeias já fez algumas conquistas, contudo “pouco se fez em língua portuguesa... Em poesia, as iniciativas ocorridas até hoje, ainda que significativas – por exemplo, as valiosas coletâneas dos portugueses António Graça de Abreu e Gil de Carvalho... e outros autores” (Portugal & Tan 2013:33).
II.2. Comentários gerais sobre a tradução de Graça de Abreu
A tradução do poema Chang Hen Ge para o português de António Graça de Abreu, “Canto do Remorso Perpétuo”, compôs-se no total de cento e vinte e duas linhas, concentrando-se na transmissão do significado do poema original.
A tradução das imagens de Chang Hen Ge do chinês para o português enfrenta sempre grandes desafios, visto que a Língua-Fonte (LF) pertence à família dos idiomas sino-tibetanos enquanto a Língua-Alvo (LA) é tão diferente e da família das línguas indo-europeias.
Tradução falha – ou intraduzibilidade ocorre – quando é impossível construir características funcionalmente relevantes da situação sobre o significado contextual do texto na LA. De um modo geral, os casos em que isso acontece dividem-se em duas categorias. Esses onde a dificuldade é linguística, e esses onde é cultural. (Catford J. C., 1965:94)
Das perspectivas linguísticas, o chinês não tem inflexões como género, tempo, pessoas e número, etc., e as palavras gozam uma grande flexibilidade no que diz respeito à categoria gramatical. A mesma palavra pode ser usada como substantivo, verbo ou adjectivo, etc.. Vamos tomar um exemplo do poema Chang Hen Ge:
椒房/阿监/青娥/老
Jiāo fáng/ ā jiān/ qīng é/ lǎo
-- Bai Juyi
Versão 1
velhos,também eunucos e belas do serralho das Pimenteiras.
-- tradução de António Graça de Abreu
Versão 2
Eunuchs and waiting maids looked old in palace deep.
-- tradução de Xu Yuanchong
Versão 3
The green-clad maids of the spiced chambers
Were growing old.
-- tradução de Yang Hsien-yi e Gladys Yang
Versão 4
han envejecido los eunucos y las sirvientas del Palacio de los Pimenteros.
-- seleção e tradução de C. G. Moral
Deixamos de lado a tradução das imagens 椒房 Jiāo fáng e 阿监 ā jiān, olhamos apenas para 青娥老 qīng é lǎo. Aqui 老 lǎo serve de duas maneiras: uma como adjectivo “velho”, e outra como verbo “envelhecer”. Por isso, o tradutor precisa de fazer a opção da categoria gramatical. Como podemos observar nas versões 1 e 2, é tomada a estratégia de traduzir para adjectivo enquanto nas versões 3 e 4 para verbo. Concluindo, ambas estratégias têm sucesso em transmitir a ideia do poema original.
Por outro lado, das circunstâncias socioculturais nascem os poemas. Quando o tradutor transmite as imagens poéticas para a LA, é inevitável encontrar barreiras culturais, especialmente quando trabalha com duas línguas tão distintas como o chinês e o português.
O tradutor esforça-se para manter o estilo do poema original. Vemos aqui um exemplo da simulação de um dos elementos da forma do poema chinês, o paralelismo:
Original: 在天/愿作/比翼/鸟
Pinyin: zài tiān/ yuàn zuò / bǐyì/ niǎo,
Tradução interlinear: No céu/ desejar ser/ asas paralelas/pássaros
Tradução de Abreu: [Prometemos,] no céu, voar como duas aves com umas únicas asas,
Original: 在地/愿为/连理/枝
Pinyin: zài dì /yuàn wéi/ lián lǐ/ zhī.
Tradução interlinear: Na terra/desejar fazer/ texturas interligadas/ramos
Tradução de Abreu: na terra, ser dois ramos entrelaçados de uma só árvore.
Reencontro das almas do Imperador e de Yang.
Tradução dos versos: Prometemos, no céu, voar como duas aves
com umas únicas asas, na terra, ser dois ramos entrelaçados de
uma só árvore.
A correspondência restritiva neste dístico apresenta-se um paralelismo puro a que chamamos antítese. Sugere-se uma leitura vertical do dístico no céu – na terra, asas paralelas – texturas interligadas, pássaros – ramos. Do ponto de vista retórico, ambos bǐ yì niǎo (pássaros de asas paralelas) e lián lǐ zhī (ramos de texturas interligadas) simbolizam a inseparabilidade do casal fraterno. De acordo com o conteúdo do poema, Xuanzong finalmente conseguiu encontrar a alma de Yang mediante a ajuda dos taoistas, e o casal exprimiu, nestes dois versos, o desejo de estar juntos para sempre. Neste dístico evidencia-se, através de uso do paralelismo, uma repetição que consolida o amor e a ideia de inseparabilidade do casal Xuanzong e Yang.
Para além da questão de imitar o estilo de escrever do poema original que corresponde principalmente às diferenças linguísticas, existem ainda a exigência de recriar os versos retóricos e os que são relacionados com a cultura chinesa. Salientam-se aqui os símiles, as metáforas, os símbolos, as alusões, os nomes próprios, as metodologias e eventos históricos, etc..
Mesmo que a LF e a LA sejam distintas, as duas culturas têm em comum uma grande variedade de objectos, quer dizer, é fácil encontrar equivalentes na LA o que se contém no poema original. Neste caso, podese ver que o tradutor toma a estratégia de tradução literal, procurando simplesmente os equivalentes na LA. Essa maneira de traduzir usa-se muito na tradução de António Graça de Abreu, porque, como a história se passou nos palácios luxuosos, existem grossos versos descrevendo a arquitectura, os ornamentos, os instrumentos musicais e as plantas. O melhor ainda é que às vezes o tradutor pode até preservar a retórica desta maneira, como por exemplo o seguinte verso:
Original: 芙蓉/ 如/ 面/ 柳/ 如/ 眉
Pinyin: fúróng / rú / miàn / liǔ / rú / méi
Tradução interlinear: lótus / como / face / salgueiro / como / sobrancelha
Tradução de Abreu: as flores de lótus como seu rosto, folhas de salgueiro como suas sobrancelhas.
O símile é a retórica mais comum. O tradutor faz uma simples tradução quase palavra por palavra do verso original, porém conseguindo reproduzir todos os elementos de forma bastante fiel e obtendo o melhor efeito de fazer os leitores recriarem a aparência da bela Yang.
Contudo, existem ainda alusões, nomes próprios e metodologias que se prendem apenas com a cultura chinesa e compartilham pouca semelhança com os fenómenos culturais da LA. Em tais casos, a preservação e a tradução literal já não são suficientes para transmitir ou esclarecer a ideia do poema original. A fim de resolver o problema, o tradutor recorre às notas de pontapé.
Original:惊/破/霓/裳/羽/衣/曲
Pinyin: jīng/ pò/ ní/ cháng / yǔ/ yī/ qū
Tradução interlinear: abismar/ romper/ Arco-íris/ roupa/ pluma/ roupa/ música
Tradução de Abreu: cessam as odes “Vestido de Arco-Íris” e “Manta de Plumas”*
* O imperador sonhara um dia que Chang E, a deusa da Lua, lhe dera a conhecer estas duas melodias. O próprio soberano as adaptou e decidiu ensinar às bailarinas, sobretudo a Yang Guifei.
O poema original diz que a guerra começa e interrompe as músicas imperiais que simbolizam a vida luxuosa do imperador. Aqui o tradutor usa um apontamento para explicar a origem das duas peças de música e sugere de modo obscuro o destino da Concubina Yang. Assim, os leitores de LA vão relacionar imediatamente a guerra com Yang, o que é mesmo a intensão do autor.
Em suma, a tradução de António Graça de Abreu encontra-se em prosa e com fluência, clareza e compreensibilidade. Quando encontra dificuldades linguísticas e culturais, o tradutor esforça-se sempre a transmitir a ideia do autor, utilizando estratégias variadas.
Mais especificamente, a tradução duma imagem é a substituição da imagem original na língua-fonte por uma imagem equivalente na línguaalvo. A tradução de imagem consiste em recriar na língua receptor o equivalente mais próximo da imagem vívida do poema original. Mas a exigência de tal substituição é a de expressar sentimento genuíno do poeta para o receptor.
III: A imagem poética: entendimento
III.1. Conceitualização de “imagem” na poesia
A fim de apreciar o encanto da poesia clássica chinesa, tem-se que ser familiarizado com a imagem, porque “as imagens estão na base da linguagem poética e participam activamente na sua constituição” e a expressão pelas quais “é um meio fundamental da poesia chinesa”, como explica Yao Jingming (2001:40). Como um dos termos amplamente usados na teoria poética, a imagem gaba-se da ubíqua presença e compôs uma parte indispensável na construção de conceições poéticas e na evocação de emoção, sendo a chave para a composição e a apreciação da poesia clássica chinesa.
Porém, a imagem aparece em vários contextos e é quase impossível para os teóricos do campo poético ou da crítica literária fornecerem uma explicação racional e sistemática do seu uso. Yuan Xingpei conclui que a imagem não tem uma conotação definida nem uma utilização consistente (Yuan 2009:40). Contudo, tenta-se aqui primeiro explicar como é entendida a imagem nesta discussão.
Na China, o conceito chinês da imagem (yixiang em pinyin) é a combinação de yi (ideia) e xiang (forma). Afirma-se no livro Introdução da Poética Chinesa [中国诗学通论] que a primeira vez que yixiang apareceu como um conjunto foi no primeiro trabalho sistemático da crítica literária chinesa The Literary Mind and the Carving of Dragons [文心雕龙] que data do século V, no qual Liu Xie ressalta o sentido da união e harmonia existentes entre a ideia e a forma quanto à criação literária, isto é, transmitir a ideia abstrata e interiorizada do poeta por via da forma artística concreta e exteriorizada. Ele indica ainda que diferentes imagens provocam emoções diversas às pessoas, e que a emoção humana altera ao passo que as imagens mudam (Yuan X.P., Meng E.D. & Ding F.1994:156-157). Por conseguinte, a imagem não se limita, desde a antiguidade chinesa, a descrever a forma concreta e visível de algo, mas como transmite o intangível que chega mentalmente, a ideia.
A conotação do termo yixiang tem sido continuadamente desenvolvida e enriquecida desde então, seguindo basicamente o caminho indicado por Liu. Yuan define o termo por via de esclarecer melhor a relação entre a forma, a ideia e a imagem. A forma é objectiva e independente da existência humana, ao passo que a ideia reside no gosto individual e na consciência subjectiva do poeta. Uma vez que a forma entre no pensamento artístico do poeta, é processada pelo poeta a fim de atender o seu gosto estético e simultaneamente integrar os sentimentos. É mediante esse processamento que a forma simples torna-se numa imagem poética. Portanto, “a imagem é a forma integrada na ideia subjectiva, ou é a ideia mostrada pela forma” (Yuan X.P. 2009:42), variando, mesmo proveniente da mesma forma, de acordo com ideias distintas.
No ocidental, Ray Frazer considera que a imagem “originalmente significava não mais do que pintura, imitação, ou cópia” (apud. Yu Pauline 1987:3). É algo externo, objectivo e independente da existência do espectador. Mas Thomas Hobbes argumenta que a imagem não pode ser vista como apenas uma percepção separada do sentimento na mente, porque “sensações… são registadas na mente nas imagens” (Ibid: 7). Ezra Pound (1913), influenciado pela poesia chinesa e japonesa, define brevemente a imagem como o que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo, enfatizando a fusão de objectivo e subjectivo.
Mais ainda, hoje em dia, a palavra imagem tem duplo significado, sendo ambos “conteúdo sensual e linguagem figurada”. Já passa a ser usada para significar a linguagem figurada, em especial a metáfora. É definida na Nova Enciclopédia de Poesia e Poética da Princeton [The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poestics] que:
uma imagem poética é, diversamente, uma metáfora, símile, ou figura de linguagem, uma referência verbal concreta, um motivo recorrente, um evento psicológico na mente dos leitores, o veículo ou o segundo termo de uma metáfora, um padrão de símbolo ou simbólica, ou a impressão global de um poema como uma estrutura unificada.
(1993:556)
Baseando nestas visões teóricas diferentes dos críticos e académicos que dizem respeito ao termo, pode se concluir que a imagem não é apenas uma simples descrição do objectivo, mas sim o veículo carregando os sentimentos subjectivos e valor estético do poeta no momento de ser criada e evoca e recria sensações aos leitores, muitas vezes apresentando-se em forma de metáforas e símbolos. Vale salientar também que, nesta discussão, vão ser analisadas somente as imagens individuais ou isoladas, não a estrutura unificada de algumas delas que deixa uma impressão global, à qual chamamos a imagística.
Em suma, a imagem poética é um modo intuitivo de perceber o mundo, um olhar inovador, não racional e não emocional. É mais intuitivo. É como olhar de uma criança, que não está condicionada a interpretar ou a descrever o mundo de um modo racional e previsível.
IV: Análise das imagens de Chang Hen Ge
O estudo das diferentes versões da tradução de Chang Hen Ge é longe de ser exausto. Tente-se aqui fazer uma análise de umas imagens poéticas representativas existentes no poema original e das respectivas imagens recriadas por António Graça de Abreu em português, no “Canto do Remorso Perpétuo”.
Existem maneiras variadas em relação à categorização das imagens. Da perspectiva de estratégias translacionais das imagens de Chang Hen Ge, são observados quatro grupos de imagens: uma imagem em chinês é exactamente a mesma que em português; uma imagem em chinês é expressa por uma imagem diferente em português; a mesma imagem é expressa diferentemente em chinês e em português; e uma imagem em chinês não tem uma imagem correspondente em português. Então, como lidar com os diferentes grupos de imagens é um problema. O mais ideal é que preservar e recriá-las cem por cento na LA, como sublinha J. Y. Liu:
Ao traduzir imagens em poesia chinesa, acredito que a imagem deve ser mantida quer seja um cliché quer seja uma original. Uma imagem banal pode não aparecer como tal em tradução; pelo contrário, pode parecer bastante original e surpreendente para o leitor que não conhece a língua original. “Ondas de Outono”, um cliché em chinês para os olhos da mulher, aparece quase ousado, se um pouco singular, em Inglês.
(James J. Y. Liu 1962:115)
Mas nem todas as imagens podem ser preservadas com sucesso, assim sendo que em “Canto do Remorso Perpétuo”, observa-se ainda, mas não só, omissão, anotação, substituição e assim por diante. Na maioria dos casos, Abreu conseguiu reproduzir imagens não perfeitas mas bastante satisfatórias, semanticamente. E em outros poucos casos, ainda existe espaço de aperfeiçoar. Seguem-se algumas imagens que estejam em negrito. (ver Exemplo 1).
Exemplo 1 – 3º-4º versos.
original | 杨 | 家 | 有 | 女 | 初 | 长成 |
pinyin | Yáng | jiā | yǒu | nǚ | chū | zhǎng chéng |
tradução interlinear | Yang | família | ter | filha | inicialmente | crescido, |
tradução de Abreu | Na família Yang, uma menina, quase criança |
original | 养 | 在 | 深 | 闺 | 人 | 未 | 识 |
pinyin | yǎng | zài | shēn | guī | rén | wèi | shí |
tradução interlinear | criar | em | profundo | quarto da menina | pessoa | não | conhecer |
tradução de Abreu | cresce recolhida, bem longe do olhar dos homens. |
A expressão 深闺 shēn guī, (quarto da menina, ao fundo), tem uma conotação cultural muito específica, que, para ser realmente compreendida, precisaria de uma explicação, o que, em uma tradução, poderia vir a destruir a concisão da linguagem poética. Na China antiga, as filhas não tinham liberdade de se comunicar com os homens, a não ser os familiares e parentes masculinos. Toda a família convivia numa casa muito fechada, com um pátio quadrado ou rectangular, em geral, no centro da construção. Normalmente as filhas solteiras viviam no quarto mais ao fundo da moradia, o mais distante da porta de entrada, e não tinham permissão de sair à vontade. A tradução de Graça de Abreu, “recolhida”, “bem longe”, é precisa e clara, uma vez que reproduz, em linguagem concisa, o isolamento da menina Yang. No entanto, a solução do tradutor, para um leitor que desconheça a expressão original, 深闺 shēn guī, parece referir-se unicamente à vida da bela Yang. O facto de crescer “recolhida, bem longe” dos olhares (dos homens e das mulheres), não parece extensivo, na tradução de Abreu, a todas as filhas de famílias aristocráticas na China antiga, crescidas no “quarto das meninas, ao fundo”. Em outras palavras, esse aspecto cultural, o hábito de isolamento das filhas, aparece na tradução de Graça de Abreu como um caso isolado (da bela Yang), e não como um comportamento da cultura chinesa no tempo em que viveu a jovem Yang. Se o objectivo do tradutor fosse revelar para o leitor de língua portuguesa esse hábito da cultura chinesa na época (contido na imagem do “quarto das meninas, ao fundo”), sem perder a concisão da sua tradução poética, ele poderia incluir, como recurso de tradução, uma nota explicativa, o que nem sempre é apreciado por leitores de poesia. (ver Exemplo 2).
Exemplo 2 – 49º-50º versos.
original | 行 | 宫 | 见 | 月 | 伤 | 心 | 色 |
pinyin | xíng | gōng | jiàn | yuè | shāng | xīn | sè, |
tradução interlinear | Andar | palácio | ver | lua | magoar | coração | expressão |
tradução de Abreu | No palácio do exílio, o fulgor do luar magoa-lhe o coração, |
original | 夜 | 雨 | 闻 | 铃 | 肠 | 断 | 声 |
pinyin | yè | yǔ | wén | líng | cháng | duàn | sēng |
tradução interlinear | Noite | chuva | ouvir | campainha | intestino | desligar | som |
tradução de Abreu | o tinir das campainhas, à chuva da noite, rasga-lhe as entranhas. |
Saudades de Yang Guifei no palácio do exílio.
Versos: No palácio do exílio, o fulgor do luar magoa-lhe o coração,
o tinir das campainhas, à chuva da noite, rasga-lhe as entranhas.
No que respeita aos usos e costumes chineses, existem algumas expressões específicas em que combinam uma imagem com determinados sentimentos. Na China antiga, acreditavam que a forma redonda da lua simboliza a reunião de todos os familiares. Como às vezes alguns membros não conseguiram voltar para casa, ficaram a ter saudades dos outros. Por isso, já se formou há milhares de anos a ideia de sentir a falta de alguém quando olhar para a lua. Os antepassados chineses, independentemente da sua profissão, consideravam a lua como um meio de contacto com os distantes familiares ou amantes para enviar as suas saudades e bênçãos. Ocupando uma posição especial na mente dos chineses, a imagem da lua, no caso de Chang Hen Ge, não só serve como uma descrição da cena mas também revela a solidão do imperador e as suas saudades da concubina Yang. A tradução de Graça de Abreu consegue transmitir a ideia de o imperador ficar triste ao olhar para a lua, mas é desconhecido se os leitores estrangeiros percebem realmente ou não os sentimentos do imperador.
Na cultura chinesa, a expressão 肠断 cháng duàn (intestinos cortados) remonta à Dinastia Jin Oriental (316-420) e é usada para descrever a tristeza extrema. É uma expressão exagerada mas fixa e enraizada na mente dos chineses. Mesmo que os leitores de língua portuguesa não conheçam a expressão, ficam a saber que a dor que o imperador sentiu é tão forte como se lhe fossem rasgadas as entranhas. Por isso, às vezes, a preservação da imagem na língua fonte pode soprar uma brisa fresca para a língua alvo. (ver Exemplo 3).
Exemplo 3 – 69º-70º versos.
original | 迟 | 迟 | 钟 | 鼓 | 初 | 长 | 夜 |
pinyin | Chí | chí | zhōng | giǔ | chū | cháng | yè |
tradução interlinear | tarde | tarde | sino | tambor | início | longo | noite |
tradução de Abreu | Timbales, gongos cadenciam o avançar da longa noite, |
original | 耿 | 耿 | 星 | 河 | 欲 | 曙 | 天 |
pinyin | gěng | gěng | xīng | hé | yù | shǔ | tiān |
tradução interlinear | claro | claro | estrela | rio | ir | amanhecer | dia |
tradução de Abreu | depois a madrugada chega, a Via Láctea empalidece. |
Literalmente 星河 xīng hé é “o rio das estrelas” e a sua equivalência na língua portuguesa é a Via Láctea, a mesma tradução de Graça de Abreu. Faz todo o sentido e a estratégia de achar o equivalente é adequada. De facto, para os chineses, o rio das estrelas significa mais do que a Via Láctea, porque tem a sua origem numa lenda chinesa. Wangmu, chefe de todas as deusas do reino celestial, estava zangada com o namoro entre uma das suas filha, a Tecedeira, e o Vaqueiro, porque ele era muito pobre. Para separá-los, Wangmu colocou um rio de estrelas entre eles e só os autorizava a encontrar-se uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua. No fim do poema original, relata-se a promessa do imperador e Yang de se reunir no pavilhão da Vida Eterna no mesmo dia em que o Vaqueiro e a Tecedeira se reencontram. (ver Exemplo 4).
Exemplo 4 – 89º-90º versos.
original | 金 | 阙 | 西 | 厢 | 叩 | 玉 | 扃 |
pinyin | Jīn | què | xī | xiāng | kòu | yù | jiōng |
tradução interlinear | ouro | palácio | oeste | câmara | bater | jade | batente |
tradução de Abreu | O mágico atravessa o pórtico de ouro, o pavilhão do Oeste, bate à porta de Jade |
original | 转 | 教 | 小玉 | 报 | 双成 | ||
pinyin | zhuǎn | jiào | Xiǎoyù | bào | Shuāngchéng | ||
tradução interlinear | indireto | pedir | Xiaoyu | notificar | Shuangcheng | ||
tradução de Abreu | e pede que anunciem a sua chegada à dama estranha e linda. |
No poema original, 小玉 Xiǎoyù e 双成 Shuāngchéng são nomes próprios e têm uma dimensão alusiva. Xiǎoyù era a filha de um governador do condado Wu e, Shuāngchéng era uma lacaia de Wangmu, chefe das deusas. Ambas eram lindas e no caso de Chang Hen Ge, serviam como camareiras da imortal Essência Puríssima, quer dizer, de forma implícita, o espírito da concubina Yang. Se mantivesse estes nomes na tradução de português, seria imprescindível citar as alusões, o que construiria muito trabalho de explicação e compreensão tanto para o tradutor como para os leitores. Graça de Abreu resolveu o problema simplesmente pela omissão dos nomes, sem causar confusão nenhuma aos leitores e deixando a história correr fluentemente. (ver Exemplo 5).
Exemplo 5 – 117º-118º versos.
original | 在 | 天 | 愿 | 作 | 比 | 翼 | 鸟 |
pinyin | zài | tiān | yuàn | zuò | bǐ | yì | niǎo |
tradução interlinear | em | céu | desejar | ser | paralelo | asa | pássaro |
tradução de Abreu | Prometemos, no céu, voar como duas aves com umas únicas asas, |
original | 在 | 地 | 愿 | 为 | 连 | 理 | 枝 |
pinyin | zài | dì | yuàn | wéi | lián | lǐ | zhī |
tradução interlinear | em | terra | desejar | ser | ligado | textura | ramo |
tradução de Abreu | na terra, ser dois ramos entrelaçados de uma só árvore.” |
Este verso é o mais conhecido de todo o poema e contém um sentimento comovente e doloroso. 比翼鸟 bǐ yì niǎo é um tipo de pássaro lendário com apenas um olho e uma asa e, para voar no ar, o pássaro fêmeo e o pássaro macho têm de ficar sempre juntos. 连理枝 lián lǐ zhī são duas árvores cujos ramos se unem e entrelaçam e, têm um pseudónimo “árvores de casal”. Ambas as expressões são normalmente metáforas do casal amoroso e inseparável, bem como implicam o amor eterno. A tradução de 比翼鸟 bǐ yì niǎo está correta, mas não será melhor dizer “duas aves que voam asa a asa/lado a lado”, com uma repetição de palavra para reforçar a ideia? E 连理枝 lián lǐ zhī foi mal traduzido, dado que, mesmo o caracter 枝 zhī significar ramo, de facto referem-se a duas árvores em vez de dois ramos da mesma árvore. (ver Exemplo 6).
Exemplo 6 – 10º verso.
original | 温 | 泉 | 水 | 滑 | 洗 | 凝 | 脂 |
pinyin | wēn | quán | shuǐ | huá | xǐ | níng | zhī |
tradução interlinear | tépido | fonte | água | escorregadio | lavar | coagulado | gordura |
tradução de Abreu | a água das fontes, cálida e doce, sobre seu corpo de jade e alabastro. |
Literalmente 凝脂 níng zhī significa gordura coagulada. Esta tradução faz imaginar, em vez da beleza do corpo de Yang, a má linha duma mulher, por quem o imperador absolutamente não se vai apaixonar. 凝脂 níng zhī é uma metáfora que indica uma pele clara, lisa e fina. A expressão ainda é usada hoje em dia mas aparece mais nas obras literárias do que na linguagem coloquial. A tradução de Abreu não se limita ao significado do poema original, mas procura transmitir toda a acepção, e ainda melhor, não perdendo as imagens metafóricas. É a tradução literal não palavra por palavra, mas ao pé das letras. (ver Exemplo 7).
Exemplo 7 – 14º verso.
original | 芙蓉 | 帐 | 暖 | 度 | 春 | 宵 |
pinyin | fúróng | zhàng | nuǎn | dù | chūn | xiāo |
tradução interlinear | lótus | cortina | quente | passar | Primavera | noite |
tradução de Abreu | Por detrás das cortinas bordadas com flores de hibisco, a Primavera, o prazer das noites de amor. |
Um banho nas águas tépidas.
Versos: Na Primavera fria, a
honra de um banho nas águas
tépidas de Huaqing, a água das
fontes, cálida e doce, sobre seu
corpo de jade e alabastro.
Literalmente 春宵 chūn xiāo significa uma noite da primavera. Os leitores chineses sabem claramente que acontece algo de amor entre o par de amantes, mas essa associação de ideias não é óbvia para os leitores ocidentais. A tradução de Abreu torna o implícito claro, mas de uma forma não clara demais, dizendo “noites de amor” em vez de noites em que fazem amor. Acho que ajuda bastante os leitores a compreender tanto o conteúdo como a implicitação do poema original.
De facto, o caractere 春 chūn é usado várias vezes no poema, e já é uma imagem fixa e simbólica. Nem tudo o que aconteceu entre o imperador e Yang ocorreu na primavera. O poeta opta por adaptar a imagem arquetípica da primavera, porque além de ser uma estação vivente e animada, a primavera é cheia de luxúria. A maioria das criaturas procura namorar nesta época do ano e as femininas acabam por ficarem grávidas. Com esta adaptação, o amor entre o imperador e Yang torna-se mais romântica e com mais furor. No entanto, para os leitores de língua portuguesa, é um pouco difícil relacionar espontaneamente a primavera com o amor, pelo qual o tradutor esclarece mais uma vez a ideia. O esclarecimento é inevitável e eu ainda não tenho uma melhor solução. A tradução perde sempre algo, especialmente na tradução literária.
Uma noite de amor do casal.
Versos: Seu cabelo como nuvens, seu rosto como uma flor, um alfinete,
um lírio de oiro enfeitando as tranças.
Por detrás das cortinas bordadas com flores de hibisco, a Primavera,
o calor, o prazer das noites de amor.
Depois de analisar a tradução de algumas imagens do Canto do Remorso de Perpétuo, é notado que o tradutor António Graça de Abreu tomou medidas diversificadas ao lidar com tradução de diferentes imagens. Quando traduziu as imagens mais simples e convencionais, normalmente imagens visuais e auditivas, tentou arranjar a palavra equivalente na língua alvo, isto é, a língua portuguesa, e obteve sucesso na maioria dos casos, conseguiu transmitir a forma assim como a ideia. Em alguns casos, ao traduzir as imagens relacionadas à crença religiosa ou ao conceito tradicional, recompensou-as com anotação ou estrangeirização. Porém, nunca existe uma tradução perfeita para poesia, quer dizer, perde sempre algo no processo de tradução de obras literárias, o que aconteceu também com Graça de Abreu. É claro que alguns erros podiam ser evitados se o tradutor conhecesse melhor ou investigasse melhor a conotação cultural atrás duma imagem, mas é impressionante que de umas “falhas” nascem novos significados delicados e sortudos, no que talvez resida o encanto da tradução.
Considerações finais
A poesia clássica chinesa tem uma longa história. A tradução da poesia chinesa para português, um idioma muito popular e utilizado no mundo, é de grande importância para a divulgação da cultura chinesa a nível global e para que mais leitores de língua portuguesa possam desfrutar da bela poesia clássica chinesa. Contudo, por causa da barreira linguística, diferentes fundos históricos e culturais e distintos costumes sociais, entre outros factores, a tradução da poesia clássica chinesa é uma tarefa muito complexa e difícil.
A poesia clássica é uma pérola brilhante da literatura chinesa e a cristalização da cultura chinesa e um dos factores que constrói o encanto da poesia é a abundância de imagens poéticas. A partir de certo ângulo, um poema é constituído por diferentes imagens poéticas. A imagem é a própria poesia. A imagem poética é composta de imagens e reserva os sentimentos do sujeito.
Durante a intercomunicação cultural com os países estrangeiros, os leitores estrangeiros não são tão familiarizados com as imagens na poesia chinesa e, ele ou ela não pode apreciar a beleza de nossa poesia. É realmente uma pena, porque as imagens nos poemas clássicos chineses carregam demais factores culturais. Uma das tarefas mais importantes e urgentes da tradução é transmitir a intenção, o sentimento e a implicação do poeta. O tradutor deve fazer o leitor tocar a batida do coração do poeta. Eles podem estar satisfeitos ou comovidos por felicidade e tristeza do poeta com a ajuda da tradução.
O famoso poema clássico chinês Chang Hen Ge tem o seu próprio encanto. Ao analisar “Canto do Remorso Perpétuo” de António Graça de Abreu, podemos ver não apenas as diferenças entre os idiomas, como também podemos aprender como ser um bom tradutor. Os poemas clássicos chineses têm também uma estrutura única. Às vezes, a estrutura de um poema já constrói o poema. Ao traduzir, o tradutor mantém isso em mente e tenta transmitir a estrutura original deste poema o mais fielmente possível. Portanto, como um poema possui muitas características estruturais anti tradução para uma outra língua distinta, Graça de Abreu faz a transformação da estrutura original, o que é inevitável. Em relação a imagens poéticas existentes no poema, podemos aprender com o tradutor as estratégias. Por exemplo, para as imagens que têm equivalentes autênticos em português, o tradutor opta por traduzir directa e literalmente; para as imagens que têm equivalentes pragmáticos, o tradutor faz substituição; quando a mesma imagem é expressa diferentemente em chinês e em português, o tradutor explica e escolhe a expressão mais adequada; e para uma imagem que não tem equivalente em português e que tem alusão, o tradutor faz omissão, ou explicação e adiciona anotação. No entanto, cada estratégia de tradução não é utilizada isoladamente, porque uma boa tradução é o resultado de uma variedade de métodos utilizados simultaneamente.
Este trabalho é apenas uma investigação preliminar da tradução por Abreu de “Canto do Remorso Perpetuo” para português. São necessários mais métodos e mais teorias para apoiar a contínua pesquisa sobre as imagens poéticas chinesas, não só na poesia clássica, mas também na poesia moderna e contemporânea. Espero que haja mais pessoas interessadas em estudos de tradução das imagens poéticas chinesas e estou convencida de que as imagens poéticas chinesas vão dar a sua fragrância eterna na literatura mundial.
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