Beatriz Hernández 
Centro de Estudos de Comunicação e Cultura 
Universidade Católica Portuguesa 

 

 

Introdução: a memória como força política

 

O clássico chinês Os Anais das Primaveras e dos Outonos (Chunqiu Linjing) conta a história do rei de Yue, Goujian (496-465 a.C.), quem, após ter sido derrotado na batalha do Monte Kuaiji (actual Shaoxing) pelo seu arqui-inimigo Fuchai (495-473 a.C.), rei de Wu, voltou passados 3 anos de cativeiro para o seu país, decidido a lembrar-se da humilhação causada à sua estirpe real pela derrota. Já no seu palácio, trocou a sua confortável cama por um monte de lenha e no teto das suas dependências pendurou uma vesícula biliar para que, ao levantar a cabeça batesse nela ou para quando bebesse ou comesse algo, a sua visão lhe despertasse um sabor amargo semelhante ao da derrota. Além disto, mandou construir uma cidade no Monte Kuaiji onde instalou a capital do seu reino, para jamais esquecer a sua vergonhosa mostra de debilidade, tal como narra Cohen (2003: 149).

 

O século XX começava na China de um modo semelhante ao autoimposto pelo rei Goujian: com um discurso que apelava a rememorar, a promover um sentimento patriótico de luta para ressarcir o dano causado e a não esquecer. A China, desejosa de ultrapassar a afronta causada por potências ocidentais após as Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860), tinha que olhar para trás e reflexionar sobre o que tinha acontecido, tinha que apelar à memória e refletir para voltar a ser a nação que um dia foi. Não se podia passar por alto o facto de o reino de Yue ter acabado por derrotar o de Wu como revanche, passados 20 anos após a inesquecível derrota.

 

Neste ensaio pretendemos abordar a atitude dos chineses em relação ao passado de modo a delinear – grosso modo – de que forma foi preservado e de que forma este mesmo passado atuou sobre o presente em diferentes épocas, especialmente a mais recente e ainda latente “dinastia” maoísta e o seu legado. Neste período, onde história e realidade estiveram fortemente influenciadas pela ideologia ditada pelo líder, recordar implicava recorrer ao bloco de cera que Sócrates afirmava existir nas nossas almas – como detalha Capeloa Gil (2011). Este tinha sido oferecido como presente pela mãe das Musas, Mnemósine (Memória), e é nele onde ficam imprimidos pensamentos e percepções. O que esteja lá anotado poderá ser rasurado, mas nunca apagado definitivamente, pelo que o modo como lidamos com este registo condiciona o presente.

 

Mas o que será que acontece quando o que é anotado nesse bloco de cera consiste num argumento manipulado, construído e orquestrado pelo poder e imposto massivamente numa sociedade quase de laboratório? Poderão esses ditados ser considerados memória ou serão simplesmente sobrepostos sobre as lembranças pessoais próprias? Terá este um sentimento partilhado a modo durckheimniano pelo grosso de uma sociedade sem individualismos? Ou será antes uma memória baseada no narcisismo das pequenas diferenças? Serve a memória como um implacável lembrete de algo que se preferiria esquecer ou algo que se luta por recordar? Em que medida o silêncio fala entre quem cala, acumula potência e protege as lembranças? Como sobrevivem na China os heróis e os mitos históricos?

 

Memórias sobre o passado revolucionário da China experimentaram, segundo Olick et al. (2001), o boom das lembranças políticas e culturais, sobre tudo a partir da década dos 90 e os primeiros anos do 2000. Batizado como “Febre Mao”, este boom voltou como uma moda às ruas do país, algo que não deixou de surpreender no Ocidente. Por um lado, séries de televisão, documentários e músicas. Por outro, telefones com carcaças decoradas com imagens dos pósteres de propaganda maoísta, objetos de merchandising nas feiras de antiguidades e até restaurantes e experiências culinárias com “menus revolucionários” que imitam os servidos nas alturas de grandes carências... Em resumo: no decorrer de uma suposta era de reforma pós-revolucionária, o que encontramos parece ser um exercício de memória revolucionária, como constatam Lee e Yang (2007).

 

Estas questões surgem igualmente derivadas da imagem enigmática, às vezes complicada e no limite bizarra, sobre este país que é frequentemente partilhada no Ocidente. Se os chineses não deixam de nos surpreender por começarem a construir as casas pelo telhado, quando escolhem o branco como símbolo de luto e perda, ou quando apertam a sua própria mão para cumprimentar alguém, será que no campo dos passados, dos presentes e dos futuros os seus usos e procedimentos são, pelo contrário, partilhados connosco?

 

História, Memória e legado cultural

 

É verdade que na China se sente por todo lado a presença do passado, transborda nos cantos mais imprevistos e impregna basicamente quase tudo – basta apontar que hoje em dia a sua escrita mantém-se praticamente imutável relativamente à forma como foi criada há mais de dois mil anos. Mas, curiosamente, este passado permanece inapreensível, fisicamente ausente da paisagem chinesa e parece antes ficar encalhado no reduto mais pessoal e íntimo da sociedade. Como Leys (2005: 13) anota, o que surpreende o visitante na China é a “monumental ausência do passado”, circunscrito a um número de conjuntos célebres que restam do que a China foi. Assim, continuando com a leitura do mesmo autor, mais que habitar as pedras em ruínas – como é típico a Ocidente – “na China o passado habita os homens. Este passado é ao mesmo tempo espiritualmente ativo e fisicamente invisível”. Todavia, essa “estranha nudez da paisagem monumental chinesa” não pode ser inteiramente atribuída ao caos iconoclasta da era maoísta ou ao pesadelo destrutivo da Revolução Cultural, mas talvez encontre argumentos que a expliquem no peculiar modo do país lidar com certas etapas constrangedoras da sua história.

 

Obra do artista Zhang XiaogangObra do artista Zhang Xiaogang intitulada "Bloodline: Big Family No.3"
vendida por 12.1 milhões de dólares através da Sotheby's Hong Kong.

A China é, entre as mais antigas civilizações do nosso planeta, a única cuja continuidade nunca foi interrompida e ainda continua viva. Paradoxalmente – como assinala Leys (2005: 11) – “o respeito pelos valores espirituais e morais dos Antigos parece ter-se combinado quase sempre com uma indiferença e uma curiosa negligência em relação à herança cultural do passado”. Daí talvez essa febre quase herege e indolente pelas expressões materiais da sua cultura; daí talvez também o simples facto de os materiais e métodos utilizados para erigir monumentos na antiguidade não se esforçarem em desafiar o agressivo passar do tempo, mas sim claudicarem e concederem a vitória à erosão dos séculos, ao utilizarem-se madeiras ou argilas de entrada perecíveis e ao depositar a eternidade, não na obra, mas sim no arquiteto. Segundo o mesmo autor (ibid., 22), poderíamos até questionar:

 

“(...) se não existirá uma certa relação entre o inesgotável génio criador de que a civilização chinesa deu provas ao longo dos tempos e o fenómeno periódico da tábua rasa que impediu essa cultura de sufocar sob o peso dos tesouros acumulados pelos séculos. À semelhança dos indivíduos, também as civilizações têm provavelmente a necessidade de uma certa margem de esquecimento criador. Um excesso de recordações pode provocar uma forma de inibição; uma memória infalível e total pode constituir uma maldição (...)”

 

Empregados do restaurante Red Classic no distrito de Chaoyan (Pequim) vestidos de Guardas Vermelhos durante um espetáculo.Empregados do restaurante Red Classic no distrito de Chaoyan
(Pequim) vestidos de Guardas Vermelhos durante um espetáculo.
(© China Daily/Asia News Network)

Esta sobrecarga mental e decadência neurológica que afectam a memória individual põe em risco a memória colectiva não só pelo desaparecimento de gerações que foram testemunhas, mas também por políticas de negação que o poder de turno acaba por impor perante a impossibilidade de distribuir responsabilidades de um modo conciliador e firme (Olick et al. 2011). Se olharmos para a historiografia clássica chinesa – seguindo a leitura que WeigelinSchwiedrzik (2006) faz dum texto de Jan Assmann – compreendemos que esta se caracterizava por produzir uma master narrative empenhada em preencher os espaços entre umas dinastias e outras de forma que conseguisse legitimar a mudança de regime, justificasse a queda da casa imperial anterior, ao tempo que contribuísse para a persistência e sobrevivência do Império sob o novo poder estabelecido. É a conhecida mudança cíclica dentro da tradição que servia para começar o mesmo de um outro modo; na realidade, nova dinastia, mas dinastia na mesma.

 

Este desejo de “partir do zero” – que começa a debilitar-se com a queda da última dinastia imperial e a proclamação da Primeira República em 1912 – parece não se aplicar ao período maoísta, quando o slogan “use the past to serve the present” (Gu wei jin yong) condicionou o modo de olhar para o passado e concedeu um forte valor à memória histórica, focada nos lamentos do “Século de Humilhações”. Mao, familiarizado com o uso político de datas e vexações passadas que o próprio Guomindang tinha cultivado previamente, confiou no ritual da lembraça. Superando o próprio Jiang Jieshi (Chiang Kaishek), o Grande Timoneiro activou uma espiral de substituição de inimigos que amplificava e prolongava o medo, o ódio e o venenoso rancor dos “Cem Anos de Humilhações”. Não se podia esquecer.

 

Tal como afirma Cohen (2003: 131143), o estabelecimento da RPCh, antes de ser um momento de ruptura e revolução radical, inaugurava um período de revoluções em diferentes áreas, ao tempo que mantinha “continuidades significativas, ressonâncias e pontos de corres-pondência com aspectos da vida chinesa prévios a 1949”. O povo chinês devia conservar essa febre moral revolucionária – principalmente no meio de grandes dificuldades – para perseguir uma vitória que ressarcisse à nação e a situasse no eixo central que um dia tinha ocupado.

 

A reescrita do passado levada a cabo pela historiografia do PCCh é considerada – valendo-nos da afirmação de Harrison (cfr. Wang, 2008: 784) – “como a maior tentativa massiva de reeducação ideológica na história da humanidade”. Gries (ibid.: 788) completa este pensamento acrescentando que é certamente inquestionável que “na China o passado vive no presente como em nenhum outro país”. Neste período, escrever sobre história foi reescrever os “textos sagrados” como denomina Weigelin-Schwiedrzik (2006), editados e publicados sob o rótulo de Obras seletas do pensamento de Mao e emolduradas pelo Comité Central do PCCh através da resolução “On Some Historical Questions”, emitida pouco depois do VII Congresso do Partido celebrado em 1945.

 

Deste modo as diferenças que estabelece Assmann (2003: 154-177) entre “cultural memory” – textos sagrados que narram as origens liminares da sociedade e do sistema político que impera – e “communicative memory” – memória dos últimos cem anos e que costuma interligar três gerações numa mesma sociedade – esbatem-se e cria-se uma master narrative promulgada numa sociedade que é compelida a sonhar com a nação que já foi. Mas este era um passado selecionado e crivado pelos líderes e o Partido. No conjunto, essa fantasia foi o sonho de uma sociedade afastada da realidade interna e externa, e portanto de si mesma.

 

Se tomarmos a distinção que Kluge (cfr. Schmidt-Glintzer, 2005: 141) faz da percepção da realidade que alimenta a memória – segundo a qual temos, de uma parte, a experiência do mais próximo ou imediato passado e, de outra, os verdadeiros acontecimentos históricos mais recentes – vemos que na época maoísta ambos foram adulterados através do controlo total e da propaganda ubíqua. O que Mao alcançou, construindo seletivamente o passado, “escolhendo os traumas” e “escolhendo as glórias” foi amoldar o seu presente e, assim, condicionar irreparavelmente o futuro. Como descreve Billeter (2000: 17), “a China enquanto sonhava com o seu passado, acabou convertendo-se num país sem memória”.

 

Contudo, se tivéssemos de escolher um traço que caracterizasse, numa única palavra, o tratamento da memória e da história durante os 27 anos de reinado maoísta, o mais acertado seria o da ambiguidade. Sirvam estas palavras de Sayles (cfr. Landsberger, 1994: xviii) para delinear um esboço rápido desta época:

 

“The Revolution aims to set us free but must imprison many. The Revolution exists to spread power among the people, but first must centralize it. The Revolution must protect true freedom of speech with censorship. The Revolution strives to create a New Man but is guided by the Old ones. Within the Revolution, the individual must surrender himself to the will of the Masses, though that will is interpreted by a handfull of individuals. The Revolution promises change, but first must create order.”

 

A revolução queria derrotar o inimigo imperialista, mas o regime maoísta decidiu ele próprio – segundo observa Leys (2006: 136) – “de um modo provocatório, reivindicar-se explicitamente como uma tirania antiga, proclamando-se herdeiro político do primeiro unificador imperial”: o Imperador Amarelo Qin Shi Huan (259-210 a.C.). A revolução criticou os clássicos e lançou uma campanha de denúncia de Confúcio, mas - conforme Sierra de la Calle (2001) - o que se pretendia era substituir o espírito deste pensador e imitar os seus 25 séculos de permanência entre o povo chinês, apagando tudo quanto tinha escrito e redigindo no seu lugar uma outra doutrina (as vezes até curiosamente semelhante) que seduzisse as gerações mais novas. O resultado: a memória do povo ficou congelada e anestesiada. Apoderando-se de “apenas uns centímetros cúbicos dentro da cabeça” (Gleckner, 1956: 96), erigiu-se uma sociedade submissa às expensas de uma lavagem cerebral e de uma repetição constante de palavras de ordem publicitadas pelo Partido. Mensagens essas que minimizavam o raciocínio e propagavam um sentimento de conformidade política; mensagens salmodiadas até a saciedade através das quais se ocultava e eliminava a verdade objetiva. Seguindo este libreto, Mao e o PCCh governaram valendo-se da mais pura coerção e com isso conseguiram reforçar a sua legitimidade transformando as mentes, processo este que Schell descreveu de um modo brilhante no 11 de Julho de 2007 durante a conferência “There You Go Again: Orwell Comes to America: Propaganda Then and Now: What Orwell Did and Didn't Know” (disponível em http://www.nypl.org/live/multimedia/orwell).

 

Na opinião deste especialista, durante o maoísmo, o indivíduo não era compelido apenas a perseguir o desvio ideológico do inimigo e a denunciá-lo. Também conquistou o poder para fazer que esse mesmo indivíduo identificasse em si próprio esse erro de conduta, verificando as suas ações (portanto ativando a sua memória mais recente) e esforçando-se por encontrar em quaisquer delas o delito. Uma vez (auto)localizada a falta, devia (auto)corrigi-la por meio da (auto)crítica. Efetivamente: era preciso não esquecer. Note-se que este poder de domínio da memória e o apelo a não esquecer controlava tanto as faculdades neurológicas de reter e recordar o passado como a capacidade de fixar e decorar condutas positivas para futuras ações. A propaganda ficava encarregue de teledirigir quotidianamente a atividade cerebral da sociedade com lemas como “renmin chunzhong you wuxian de chuangzaoli” (o povo tem poderes criativos ilimitados) impresso em bilhetes de autocarro da época; “tigao jingti baowei zuguo” (aumente a vigilância para defender a Mãe Pátria) nos envelopes; “niannian bu wang jieji douzheng” (nunca esquecer a luta de classes) gravado num espelho de mesa; “da li zhiyuan nongye” (apoie agricultura em grande escala) nos pacotes de tabaco. Todos estes exemplos aparecem recolhidos em Gao (2008: 2).

 

Como ser herói e sobreviver na memória da China

 

Lu Xun, considerado o maior escritor da China moderna, observou – segundo resume Leys (2005: 247) – “que sempre que um génio original se manifesta neste mundo, as pessoas esforçam-se logo por se desembaraçar dele”. Podem optar pelo método da supressão o que faz com que o personagem, “isolada e rodeada por um muro de silêncio e enterrada viva” acabe por ser apagada da memória. Se ainda assim esta manobra não surtir o efeito desejado, continua o autor, “passase ao mais radical e mais temível método: a glorificação. Posto isto, a vítima é içada sobre um pedestal, incensada e endeusada”. Contudo, poderíamos acrescentar outros meios que permitem a obliteração de génios originais, consequência da própria ambiguidade e contrassentido que parecem presidir algumas etapas históricas na China – especialmente durante o período maoísta – das quais já Lu Xun não seria testemunha.

 

Assim, um terceiro meio seria semelhante ao processo de glorificação-supressão-reabilitação, vivido na pele de líderes como Deng Xiaoping ou pensadores como Confúcio. Outros mitos e heróis do passado ressuscitaram de forma contraditória, como o general wokou Zheng Chenggong (1624-1662) convertido em metonímia da luta maoísta contra o imperialismo apesar da sua biografia estar carregada de argumentos que o situavam nas antípodas do panteón comunista. Não importava que tivesse defendido a causa de um imperador de épocas feudais, nem que tivesse sido educado segundo os preceitos confucionistas, nem que o seu pai fosse um mercador enriquecido pela piratearia ou que a sua mãe fosse japonesa. Estes detalhes foram ignorados na hagiografia popular da RPCh. Com a Revolução Cultural até os heróis nacionais do passado tiveram que procurar refúgio (acusações contra Shi Kefa por atacar aos camponeses; críticas ao Hai Rui por trair o malvado imperador Jiajing (1521-1567). Zheng Chenggong ao menos sobreviveu e a sua imagem espera intacta ainda hoje que os mitos históricos sejam novamente invocados em nome da defesa nacional. Conseguirá fazer que o auspício de Chang Huan-yen (1620-1664) “hope that for a thousand autumns men will tell of this” permaneça em vigor?

 

Se fizermos um percurso sobre a avaliação que do próprio Mao se fez, observaremos que ele, em vida, experimentou etapas de glorificação – “supressão” – “reabilitação”. Utilizamos as aspas na fase da supressão porque, embora ele se tivesse afastado do poder após o fracasso da campanha do Grande Salto em Frente durante 1958-1960, fê-lo como estratégia para preparar o seu retorno em força, o que aconteceu em 1966 com a sua planificada Revolução Cultural.

 

Após a sua morte, o processo foi semelhante, sendo que começou também com a glorificação e seguida de uma supressão, neste caso, imposta pelo juízo histórico, embora não fosse total, firme nem radical. O PCCh preferiu antes optar pela ambiguidade e resolveu o dilema de valorizar o papel de Mao na história estipulando a fórmula algébrica do 30-70. Isto é: a sua contribuição para a revolução foi 70% positiva e 30% errada. A reabilitação, como veremos, chegou só com a “Mao craze” dos anos 90.

 

A memória do maoísmo sem Mao

 

A morte de Mao a 9 de Setembro de 1976 – preconizada, não sem ironia, com dois dos tradicionais sinais anunciadores do fim de uma dinastia: um tremor de terra e um eclipse de sol – obrigou o seu sucessor Hua Guofeng a levar a cabo uma manobra delicada: ao mesmo tempo que desmantelava e neutralizava a herança e a memória mao-ísta, teve de se reivindicar como fiel discípulo de Mao, numa acrobacia intelectual na qual também acabou por embarcar a sociedade em pleno. A China – que tinha sido ferreamente telecomandada – continuou a ser dirigida para ultrapassar ou encaixar a perda do seu líder à força de resoluções oficiais. Num país onde mudança e tradição sempre foram forças paralelas, não se podia apagar os registos do bloco de cera socrático, ainda menos num grupo que incorporava a representação mental de um evento traumático na sua identidade. Seguindo a leitura de Volkan (cfr. Wang, 2008: 785), uma geração que passa por esse género de vivências desencadeia irremediavelmente “a transmissão inter-geracional de dita inimizade histórica”. Como olhar para o passado após Mao? Que manter na memória mais vivamente e como armazená-lo?

 

Temos também de sublinhar a especial dimensão do trauma com o qual a sociedade chinesa ficou marcada. Segundo Eyerman (cfr. Weigelin-Schwiedrzik, 2009: 99): “As opposed to psychological or physical trauma, which involves a wound and the experience of great emotional anguish by an individual, cultural trauma refers to a dramatic loss of identity and meaning, a tear in the social fabric, affecting a group of people that has achieved some degree of cohesion.”

 

Tendo em conta que a experiência traumática da China se encontra sob a categoria de trauma coletivo e cultural, resultava crucial a abertura de um debate público que cicatrizasse as feridas dos sobreviventes e que promovesse uma narrativa que destraumatizasse o evento para as gerações posteriores. Definitivamente, tal como Fareed Zakaria sentenciou em 2005 na revista Newsweek: “para enfrentar com confiança o futuro, a China deve ser capaz de enfrentar o seu passado com sinceridade”. Todavia, a partir de 1976 a memória na China parece ancorada na obsessão da Revolução Cultural que ainda está por resolver. Embora a nação tivesse experimentado outra série de calamidades como a Guerra da Coreia (1954-1959) ou o Grande Salto em Frente, os anos entre 1966 e 1976 monopolizaram as reminiscências, isso sim: desde que se seguisse o princípio condutor definido oficialmente. Segundo este guião, espalhava-se a ideia da vitimização universal e acusava-se abertamente ao Gangue dos Quatro – grupo formado por Jiang Qing (esposa de Mao), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan, membros do PCCh – como autor e responsável absoluto por deturpar e corromper o pensamento de Mao bem como por propagar o tão temido caos (luan) durante a Revolução Cultural. Deste modo, promovia-se uma resolução totalmente neutral e cirúrgica para enfrentar o passado. A debilidade do PCCh e de Hua Guofeng não permitia, possivelmente, uma solução melhor.

 

Talvez esta debilidade – que não permitiu ao poder nem criar uma amnésia nem impor a sua versão memory frame – explique o motivo pelo qual o próprio partido tenha mudado de estratégia de análise em várias ocasiões e tenha abandonado o argumento inicial, anteriormente explicado, para assumir a “total negação da Revolução Cultural” e até mesmo a culpabilização universal. Mas também pode ser que a profundidade da marca que estes eventos deixaram na memória tivesse forçado esta viragem na interpretação entre as gerações submetidas a uma traumatização secundária. Pode ser que igualmente venha exigir nas gerações futuras uma constante reinterpretação, mesmo que o evento em questão pareça ter encontrado o seu espaço na continuidade da história, na memória das pessoas e na sua identidade.

 

Wang Jingsong, Taking a Picture in Front of the Gate of Heavenly Peace.Figure 1. Wang Jingsong, Taking a Picture in Front of the Gate of
Heavenly Peace. Óleo e tela, 125 x 185 cm, 1992.
(© http://dev.artspeakchina.org)

O que é um facto é que quanto mais se desobedecia à ordem dos antigos atenienses no século V a.C. comandavam para “não recordar sofrimentos” (mé mnesikakeìn) – Passerini (2003, 243) – e, consequentemente, quanto mais a sociedade mostrava o seu desejo de vingança contra o Gangue dos Quatro, mais se debilitava a imagem de Hua Guofeng e mais ganhava a de Deng Xiaoping. A enfâse que estes dois líderes colocaram no desenvolvimento económico com a campanha das Quatro Modernizações serviu, com o tempo, de chamariz social para ir regulando a intensidade das recordações. A China entra na década dos 90 surpreendentemente virada – aos olhos dos ocidentais – para a reabilitação da figura de Mao e à beira de uma nova adoração icónica sem limites. Chegava a “Mao craze”, com o ressurgir da figura do Grande Timoneiro embebido paradoxalmente numa aura consumista, de todo apelativa, mas que pouco tinha a ver com o contexto histórico. Começava assim uma fase de simulação nos termos que Baudrillard descreve: as referências ao passado esbatem-se e o ícone ressuscita num sistema artificial de signos que não se constroem nem por imitação, nem duplicação nem sequer com o intuito de parodiar (Baudrillard, 1994: 2). A memória de Mao já não instigava o fervor revolucionário nem os valores socialistas de décadas anteriores: o significante separou-se do seu significado. Neste ponto, gostaríamos de invocar a opinião de Schell (1995: 282):

 

“The truth was that Mao was being reborn not because ‘the masses’ wanted another episode of permanent revolution, but because they were beginning to treat Mao as part of a pop-culture fad with little more ideological seriousness than crazes for hulha-hoops, Silly Putty, or bubble-gum cards.”

 

Carcaças de telemóvel inspiradas nos pósteres de Propaganda Maoísta.Carcaças de telemóvel inspiradas nos pósteres de
Propaganda Maoísta. (http://www.zazzle.com)

O resultado desta viragem materializou-se em obras como a do pintor Wang Jingsong titulada Taking a Picture in Front of the Gate of Heavenly Peace, na qual desmonta e desconstrói símbolos de grande peso histórico para a China como é a Praça de Tiananmen, a porta da Cidade Proibida e o sempiterno retrato do Presidente Mao a olhar como um espectro vigilante o destino da nação. Uma nação que já não está composta pelo triunvirato de forças do passado (camponeses-soldados-trabalhadores), mas sim por cidadãos cosmopolitas a posar perante o quadro que simplesmente se adivinha no fundo privado do poder de observação. Eis o toque final desta encenação: o detalhe das telhas douradas da Gate of Heavenly Pace representadas como filtros de cigarros importados, sinal quiçá da aceitação dos costumes capitalistas.

 

Qual o futuro de tanta memória?

 

O processo de sarar um trauma não passa pela busca da verdade histórica no sentido menos complexo – se é que existe – desta expressão. É antes um percurso de construção no qual as pessoas tentam seguir um caminho que lhes permita lidar com a dor e a memória, caminho este preferivelmente partilhado pela maioria da sociedade.

 

Este tipo de verdade aquiesce, portanto, com a necessidade de um presente no qual se tracem planos para o futuro. Se essa verdade e a forma como se lida com a memória não garantem a possibilidade de um presente, não poderá ser válida e será preciso reformulá-la. É por isto que, dentro da memória comunicativa, os traumas não superados continuam a apresentar novas respostas a velhas questões.

 

Hoje em dia assistimos a um modo de tratamento da memória sobre os Dez Anos de Caos no qual é evidente o protagonismo da geração dos Guardas Vermelhos. Este protagonismo articula o desejo de falar e contar a sua história em primeira pessoa. Mas estas presenças não escondem as grandes ausências: os conhecidos velhos cargos ou lao ganbu permanecem em silêncio – segundo conta Weigelin-Schwiedrzik (2009) – não importa se foram vítimas ou se foram perpetradores. Esse silêncio ou desejo de esquecer gera igualmente uma forma de memória traumática nascida como engrama neuromuscular e deve portanto ser considerada como signo de traumatização.

 

Comoções causadas por desastres naturais causam igualmente um efeito devastador na sociedade, mas na maior parte dos casos são abordadas como um terrível golpe do destino e por isto com respostas que só os deuses ou a religião poderiam explicar. Desastres perpetrados por uma mão humana deixam ao descoberto a nossa própria imperfeição e atacam muitas vezes ideais expondo frustrações, remorsos e procura de culpados. É aqui onde reside a dificuldade de fechar feridas e o motivo pelo qual este é um processo lancinante e duradouro.

 

A China, hoje em dia, continua a lembrar, de diferentes formas e manifestando-se ou ocultando-se de diversos modos. Todavia, a História continua a ser o único meio para o efeito (o passado não habita as pedras e sim os indivíduos), embora o processo de negociar o guilt management – defendido por Thomas Elsaesser como linha de partida para estabelecer responsabilidades e caminhar para a reconciliação – ainda está em aberto. As memórias estão muito fragmentadas e isso também coloca em risco o modo como as novas gerações aprendem, em segunda mão, a lembrar o passado. É urgente o esforço para reunir, organizar e avaliar materiais, tal como sugere Olick et al. (2011). Assim poderá avançar-se na construção dos “social memory studies” que completem os mais históricos “collective memory studies” e que permaneçam abertos a novos fenómenos da memória e futuras manifestações do recordar. Utilizando palavras de Lenine sobre as possibilidades dialécticas que se podem encontrar do património histórico, Chen (1994) aponta para a necessidade de incluir na análise de qualquer cultura – seja oriental ou ocidental – tanto a versão positiva como a negativa e evitar promover um discurso dominante nos termos foucaultianos. Só deste modo o resultado será “dialéctico e portanto convincente”. Olhar para “o que foi” proporciona uma economia moral referencial para avaliar, perceber e aceitar o presente. As memórias podem forjar sentimentos de solidariedade ou de injustiça ao mesmo tempo que contribuem para a mobilização, e tudo porque “desnaturalizam ou conferem historicidade à ordem social em vigor, solidificando a visão moral de que as coisas foram, devem ser e podem ser diferentes” (Lee e Yang, 2007: 7). Mas é necessário evitar hegemonias que desvirtuem o equilíbrio e só mostrem uma face da moeda.

 

A China terá pela frente o desafio de estudar o mecanismo de toda a maquinaria da memória: que tipo de narrativas é que continua a produzir, quem é quem as produz, com que objectivos e através de que meios... Não podemos perder de vista a evidência de que neste país a política adquire formas culturais do mesmo modo que produtos culturais incorporam significados e consequências políticas. Ali continua a imperar o poder da memória e a memória do poder. Mas esse poder e essa memória devem superar interesses partidários e tornar-se em forças integradoras e, deste modo, inaugurar tempos nos quais passe a ser certa esta afirmação recolhida por Olick et al. (2001, 37):

 

“Doing justice to the reality of history is not a matter of noting the way in which the past provides background to the present; it is a matter of treating what people do in the present as a struggle to create a future out of the past, of seeing that the past is not just the womb of the present but the only raw material out of which the present can be constructed.”

 

As vezes, como afirmava Valéry, acontece que o futuro é a causa do passado (cfr. Barthes, 2009: 215).

 

Conclusões

 

Recordar é um processo constante e obstinado e até curiosamente inconsciente, tal como o respirar. Fisicamente cada parte do nosso corpo é produto e armazena códigos herdados e hereditários. Neurologicamente, criamos ou sobre-escrevemos inevitavelmente outras memórias até quando queremos esquecer ou cancelar o passado. Nem sequer quando estamos a procura de algo que tenhamos esquecido deixamos de lembrar (mesmo que seja apenas parcialmente). É a autopoiesis do recordar...

 

Escultura situada num dos acessos do popular recinto artístico “798” em Pequim.Escultura situada num dos
acessos do popular recinto
artístico “798” em Pequim.
(©BPH)

Na atualidade o viajante curioso que percorra a China e faça uma revista dos monumentos das principais cidades, reparará que só há um memorial de vítimas por conflito armado nos 9,6 milhões de quilómetros quadrados do território. Está situado na província de Sichuam (no Sudoeste), cuja capital Chengdu foi curiosamente sede do governo nacionalista. De facto, trinta e seis anos após o fim oficial da Revolução Cultural, não há monumento público específico onde render homenagem às vitimas desses dez anos, não há um dia para comemoração.

 

O que ainda proliferam são discursos fragmentados que mostram que as pessoas não estão preparadas para ouvir os testemunhos que não sejam os próprios. Também continua a existir muito silêncio e muitas ausências que não são esquecimento. Parece que impera um lapsus memoriae de inibição à escala social causado pela ambiguidade na avaliação do bem e do mal, pela impossibilidade de definir quem é vítima e quem é perpetrador, e pelo impedimento de poder recordar sem tabus de um modo integrador e não agressivo com o resto da sociedade.

 

A memória é um processo baseado numa auto-reflexão e numa introspecção pessoal. Abrir o caminho da empatia poderia ser um modo de fomentar a reconciliação das múltiplas versões que coexistem hoje em dia de alguns acontecimentos, como por exemplo da Revolução Cultural ou do Grande Salto em frente. Reconstruindo com claridade – através de um debate que será doloroso e pungente – os valores morais do bem e do mal, da culpa e da responsabilidade, da vítima e do perpetrador, pode ser que o peso da memória passe a ser suportável. Só este guilt management ajudará a descarregar o fardo que oprime – mesmo que seja de um modo inconsciente – ao indivíduo. Fomentar estas dinâmicas inclusivas da memória abriria, assim, um novo modo de lembrar e dialogar para construir um desejado mas sempre complexo espaço da reconciliação.

 

 

Bibliografia

  • Assmann, J. (2003), “Cultural Memory: Script, Recollection, and Political Identity in Early Civilizations”. Historiography East and West. 1, pp.154-177.
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