António de Abreu Freire 
Professor Universitário 

 

 

A Europa dominou o mundo a partir do século XVI com o conhecimento, a tecnologia, a civilização e a cultura, no momento da grande expansão marítima e comercial iniciada pelos países ibéricos e continuada por holandeses, ingleses e franceses; Portugal contribuiu com uma fatia considerável de esforço para a expansão dos valores ocidentais, deixando bem marcada a sua presença tanto no Novo Mundo recém-encontrado como no Oriente, velho mundo e berço ancestral de grandes civilizações. A matemática e a geometria, a ciência astronómica, a tecnologia da instrumentação náutica, a cartografia e a arte de construção naval resultaram de contribuições inovadoras de diferentes povos europeus: judeus e muçulmanos ibéricos foram os grandes pioneiros da álgebra e da geometria, alemães e holandeses especializaram-se no fabrico de ins- trumentos náuticos e eram os melhores artilheiros das frotas, as esco- las ibéricas de cosmografia foram pioneiras na arte de mapear, enfim os armadores e especuladores financeiros exigiram dos estaleiros de construção naval embarcações seguras e eficientes para o sucesso de um comércio sem fronteiras que criou a primeira globalização. Na Ribeira das Naus, nos estaleiros de Antuérpia e de Amesterdão os carpinteiros navais criaram nas primeiras décadas do século XVI as mais sofisticadas embarcações que os armadores tinham até então lançado pelos oceanos. A expansão marítima que sustentou a primeira globalização resultou da conjugação de conhecimentos provenientes de vários cenários culturais e da partilha de inovações tecnológicas. Porém, a motivação profunda do reino de Portugal para tanto empenho era de ordem ideológica.

Nau portuguesa do século XVI em Antuérpia Nau portuguesa do século XVI em Antuérpia, gravura flamenga da época da autoria de F. H. Bruegel.
No mastro de proa ostenta estandarte da cruz de Borgonha, no mastro do meio iça a bandeira portuguesa
com a esfera armilar e no mastro de mezena a bandeira da cidade do Porto.

Os soberanos ibéricos assumiram como responsabilidade própria os custos da descoberta e da expansão, aliando à ambição da riqueza dispersa por terras distantes os desejos de conter o domínio muçulmano e de difundir a fé cristã. Conquistar a Terra Santa fazia parte dos grandes objetivos imperiais e messiânicos dos reis da dinastia de Avis, servindo os interesses da igreja de Roma, assumidos como destino da nação. Desta forma, o poder religioso e as ambições da realeza encontraram nos al- vores da modernidade um terreno comum de intervenção e de interesse. A primeira façanha notável de um soberano cristão fora da Europa, quando ainda existia em terras ibéricas o Emirado Nasrida de Granada, foi a conquista de Ceuta em 1415 pelo rei D. João I de Portugal. A cidade era pequena e de pouco interesse comercial, contendo menos de 30.000 almas e uma pequena guarnição de defesa mas servia de escala estratégica e de refúgio aos corsários muçulmanos que lançavam contínuas razias pelas costas portuguesas. Até à conquista muçulmana em 709, Ceuta tinha sido cristã de obediência bizantina e depois da ocupação portuguesa continuou sendo um espaço onde cristãos, judeus e muçulmanos conviveram num clima de paz e de tolerância. Em tempos de crise de chefia da igreja católica, quando o papado se dispersou por Roma, Pisa e Avignon, o rei português optou por apoiar o papa de Roma, Martinho V, confirmado no concílio de Constança em 1417. Em recompensa pelo apoio do rei português, o papa criou nesse mesmo ano a diocese de Ceuta, passados menos de dois anos após a conquista; foi a primeira diocese cristã de obediência romana fora do território europeu, à qual se juntariam, embora com desempenhos mais discretos, a de Tânger (1468) e a de Safim (1487), até à criação da diocese do Funchal em 1515, quando o esforço da expansão portuguesa se estendia já por toda a costa atlântica e índica de África, por alguns pedaços da costa do continente americano (Brasil) e pelo Oriente até Malaca e às ilhas do Pacífico ocidental. Apesar das comunidades cristãs do norte de África serem muito reduzidas, da dimensão demográfica de pequenas paróquias, foi quanto bastasse para que a cultura latina penetrasse através do ensino sistemático do catecismo e da moral cristã, do estatuto da família, da língua, das regras comerciais, do direito e da administração territorial. Ceuta, que deixou de ser portuguesa quando os seus habitantes optaram por permanecer súbditos da coroa espanhola após a Restauração, nunca mais deixou de ser cristã até aos nossos dias nem nunca mais deixou de ser uma comunidade tolerante e aberta a outras culturas e religiões. Foi o primeiro foco e um modelo bem-sucedido de outros núcleos de difusão da cultura neolatina pelo mundo. Um sonho!

Espaços da intervenção de Afonso de Albuquerque. Espaços da intervenção de Afonso de Albuquerque. (Ilustração de Sérgio Carvalho)

As coroas de Portugal e Espanha guardaram fidelidade à igreja de Roma, mesmo nos tempos conflituosos da afirmação do poder da realeza e no reboliço dos movimentos reformadores; por isso os papas concederam aos “fidelíssimos” reis ibéricos privilégios exclusivos: um desses privilégios, o mais conhecido e badalado foi o reconhecimento da posse do mundo por descobrir e conquistar, dividindo esses espaços disponíveis pelas duas coroas. O outro foi a instituição do Padroado Real, que concedia aos soberanos o direito de criar instituições religiosas, nomear os bispos e administrar os bens da igreja pelos territórios descobertos e conquistados. O Padroado (em Espanha o Patronato Real) é anterior aos primeiros esboços do tratado de Tordesilhas, anterior mesmo ao tratado de paz de Alcáçovas (1479) quando os soberanos ibéricos se entenderam e fixaram os limites da respetiva área de intervenção atlântica; a primeira versão do Padroado português data de 1456, quando o papa Calisto III (um espanhol, Afonso Borja), pela bula Etsi Cuncti, ratificou as decisões dos seus predecessores Nicolau V (bula Romanus Pontifex, de 1455) e a bula de cruzada de Eugénio IV (bula Rex Regum de 1435). O Padroado data portanto do tempo do infante D. Henrique, quando os seus navegadores, alcançado o Cabo Verde, avançavam ao longo da costa até à Serra Leoa e golfo da Guiné. Por esses anos ainda pensavam os eruditos, apoiados nos relatos de Luís (Alvise) Cadamosto, que o rio Senegal (na fronteira da Mauritânia com o Senegal), comunicava com o rio Nilo, permitindo assim o acesso ao coração do mundo islâmico, um território considerado então como parte da “Índia”, por onde penetraria a nova “cruzada” dos cristãos latinos. A primeira igreja cristã dos trópicos, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, terá sido erguida pelos anos de 1470 na Ribeira Grande, ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde, colonizado pelos portugueses a partir de 1460, reinava D. Afonso V.

Espaço da Ação Diplomática e Expansionista de Albuquerque. Espaço da Ação Diplomática e Expansionista de Albuquerque. (Ilustração de Sérgio Carvalho)

O tratado de Tordesilhas (junho de 1494) foi ratificado pelo papa Alexandre VI (outro espanhol, Rodrigo Borja, sobrinho de Calisto III) ainda antes de ser assinado pelos delegados dos soberanos dos dois países e levaria algum tempo a acertar nos detalhes da linha de demarcação oriental (foi retificado pela última vez em Saragoça em 1529, reinavam Carlos V e D. João III). Este documento projetou os dois países ibéricos para a aventura comercial e militar da expansão, apesar do pouco respeito que mereceu por parte dos demais soberanos europeus: o rei de França (François I) escarnecia perguntando pela cláusula do testamento de Adão que justificava tal partilha do mundo. Quatro anos depois do acordo de 1494 os portugueses chegavam ao continente indiano e daí catapultaram-se até ao Oriente mais distante; a empreitada comercial deu rápidos resultados e o rei português D. Manuel manifestou o seu reconhecimento ao papa através de duas vistosas embaixadas, para agradecer o apoio institucional da igreja; a primeira, recebida pelo papa Júlio II em 1506, foi comandada pelo arcebispo de Braga D. Diogo de Sousa e a segunda, a mais impressionante, riquíssima em pedras preciosas e presentes exóticos (cavalos persas, leopardos, panteras adestradas e um elefante) foi recebida pelo papa Leão X em Março de 1514, comandada por Tristão da Cunha. Em Junho desse ano, o mesmo papa criava uma nova diocese, a do Funchal, da qual ficaram a depender todos os religiosos espalhados pelos três continentes até então alcançados pela expansão colonial (a primeira diocese do Novo Mundo espanhol, foi a de Santo Domingo, criada em 1504). Os reis ibéricos faziam chegar regularmente a Roma embaixadas onde figuravam autóctones do Novo Mundo e das nações orientais, para darem a conhecer os novos aderentes à doutrina cristã e fazerem publicidade da ação empreendedora que promoviam e orientavam. O espetáculo do exotismo destinava-se a provocar a euforia e o interesse pelos territórios e povos até então desconhecidos. No Oriente, Afonso de Albuquerque lançava por sua conta e risco as bases de um verdadeiro império político e comercial, propondo ao rei uma nova estratégica militar e colonial, que não foi entendida no reino; partilhando as ideias imperialistas e messiânicas do rei D. Manuel, Albuquerque visava a conquista de Meca e até a exumação dos ossos do Profeta para os levar de Medina para Lisboa como represália. Albuquerque morreu em 1515, desacreditado e humilhado, vítima de intrigas cortesãs e de concorrentes com ambições mais voltadas para o lucro do que para a cruzada.

 

Sé Catedral de Goa Sé Catedral de Goa: Dedicada a Santa Catarina, como a primeira
ermida mandada construir por Afonso de Albuquerque aquando
da tomada da praça, em 25 de Novembro de 1510. O plano
arquitetónico é idêntico ao das catedrais portuguesas da mesma
época (século XVI).

Da diocese do Funchal desmembraram-se novas dioceses em 1533: Açores, Cabo Verde, São Tomé e a primeira diocese portuguesa do Oriente, Goa, novos focos de irradiação dos valores religiosos e morais que caracterizavam a civilização europeia. Em 1551 o papa Júlio III criava a primeira diocese portuguesa no Brasil, São Salvador da Bahia e ratificava mais uma vez o Padroado a pedido de D. João III, agregando-o à Ordem de Cristo e esta em definitivo à coroa portuguesa. (Entretanto tinham sido criadas vinte e duas dioceses na América espanhola)

 

A governação do espaço de influência militar e comercial portuguesa pelo Oriente passara progressivamente de Cochim para Goa, território conquistado e reconquistado por Albuquerque no ano de 1510. Governava então (em 1530) D. Nuno da Cunha, filho daquele mesmo Tristão da Cunha que comandara a embaixada ao papa em 1513/14 e o seu governo de dez anos foi o mais longo de toda a história da presença portuguesa no Oriente (1528-1538); pelo poder militar e pela temerária ousadia comercial, os portugueses impuseram-se desde Sofala, na costa de Moçambique, até à China e ao Japão, incluindo uma fatia considerável dos arquipélagos do oceano Pacífico. A conquista de Meca e o controle do Mar Vermelho deixaram de comandar os rumos das naus, mas a alternativa fixada por Albuquerque concretizava-se. Desde o início que os religiosos acompanharam os militares e os comerciantes, primeiro os franciscanos e os carmelitas, mais tarde oratorianos, agostinhos e jesuítas, entusiasmados pelo exemplo do cofundador da Companhia de Jesus, São Francisco Xavier, que chegou à Índia com mais dois companheiros na comitiva do governador Martim Afonso de Sousa, em Maio de 1542; o missionário passaria para a história do cristianismo como o Apóstolo do Oriente, tendo percorrido todo o espaço de Goa até ao Japão, numa série de viagens pioneiras que permitiram desenhar uma estratégia missionária eficiente e duradoura. Numa primeira viagem, em 1534, o comandante militar levara como médico pessoal um filho de cristãos novos já famoso no reino, chamado Garcia da Orta, que se instalou como médico em Goa, onde conviveu com Luís de Camões e onde viria a falecer em 1568. Devemos-lhe uma grande obra científica publicada em Goa em 1563, Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia – o primeiro olhar crítico de um médico ocidental sobre as tradições curativas do oriente.

Fragatas holandesas do século XVII Fragatas holandesas do século XVII, gravura holandesa da época.

A chegada dos portugueses ao oceano Índico proporcionou desde os primeiros encontros um intercâmbio sustentado de conhecimentos. Ultrapassado o impacto inicial da desconfiança e a demonstração de força que foi necessária para garantir a abertura e o controlo do trato comercial, o que foi facilitado pela superioridade bélica dos portugueses e pela manta de retalhos dos frágeis poderes instituídos ao longo das costas da Índia, os forasteiros de imediato se interessaram por outras experiências, procurando antigas comunidades cristãs isoladas e grupos de eruditos com quem partilhar conhecimentos. Logo no regresso da primeira viagem à Índia, entre a meia centena de navegantes que desembarcaram em Lisboa sãos e salvos, vinha um piloto muçulmano culto e viajado, originário de Tunes, chamado Monçaide, que usava com maestria um instrumento mais eficaz do que o astrolábio para calcular as latitudes, a balestilha. Na viagem de Cabral os pilotos testaram a eficácia de um outro instrumento de medição de alturas trazido por Vasco da Gama, o kamal, com as respetivas tabelas dos mouros ou tabuletas da Índia. Outro personagem trazido para Portugal no regresso da primeira viagem à Índia foi Gaspar da Gama (ou das Índias), um judeu de origem polaca que serviu de intérprete nas viagens de Cabral e nas seguintes, prestando inestimáveis serviços aos pioneiros da aventura oriental. Os navegantes dos mares orientais já contavam com o apoio de cartógrafos e de pilotos experientes, conheciam com rigor os regimes das correntes e dos ventos e as rotas comerciais que cruzavam o Índico e o Pacífico ao ritmo das monções. Mercadores muçulmanos e judeus de origem ibérica e norte africana já se encontravam instalados há mais de cinco séculos pelas terras do Oriente onde agora chegavam os novos forasteiros e constituíam os principais obstáculos às pretensões comerciais dos portugueses. Porém, eram esses mesmos os mais indicados para partilhar com os recém-chegados a experiência acumulada. Os poucos cristãos encontrados faziam parte das classes mais pobres, tanto em Socotorá como em Cranganor, Coulão e Meliapor; o império fabuloso do Prestes João, que alimentara utopias durante séculos, não passava de um reino pobre e herético, encurralado entre poderosas comunidades islâmicas do continente africano. Porém, a ideologia imperial e messiânica continuava a guiar os destinos de todas as empreitadas.

 

A presença dominadora de Portugal impôs-se muito rapidamente e durou pouco mais de um século, se bem que as consequências deste ousado e temerário empreendimento se estenderam por mais de três séculos por todo o Oriente. Foi o resultado de uma estratégia deliberadamente construída a partir de objetivos previamente assumidos: o primeiro desses objetivos era o cerco ao domínio comercial dos muçulmanos e a destruição do Islão que, após a queda de Constantinopla em 1453, confinava a Europa num espaço comercial demasiado restrito. As bulas dos papas Nicolau V e de Calisto III foram emitidas logo nos anos seguintes à queda de Constantinopla nas mãos dos muçulmanos (1453) e por todo o espaço do Magrebe que os portugueses controlavam ao longo da costa de África, o inimigo, o concorrente e o parceiro comercial, era sempre o mesmo muçulmano. O projeto do rei D. Manuel e de Afonso de Albuquerque de controlar o Mar Vermelho para fechar por completo as rotas marítimas dos muçulmanos não se concretizou, como também não havia meios para concretizar a sedutora sugestão do Négus etíope: desviar o curso do rio Nilo a fim de arrasar o poderio do sultão do Cairo e cumprir a profecia de Ezequiel - reduzirei os canais do Nilo a um deserto… (Ez,30, 12).

 

A longa rota do Cabo servia os objetivos a alcançar e permitia chegar até às comunidades cristãs mais isoladas, cruzando o Índico. O poder religioso em Roma confiava na guerra de cruzada dos portugueses e na sua estratégia de expansão marítima para travar o Islão e a expansão do comércio dos infiéis, por isso os papas apoiavam sem reservas a expansão portuguesa, primeiro através dos privilégios concedidos à Ordem de Cristo e, depois da anexação da Ordem à coroa, diretamente através dos soberanos. O mito da origem divina do reino, quando o próprio Cristo terá aparecido ao primeiro rei de Portugal na véspera de uma fabulosa batalha, era tema divulgado pelo menos desde a Crónica de Portugal de 1419, retomado em 1451 (na Segunda Chronica Breve de Santa Cruz de Coimbra) e foi restaurado na Crónica de D. Afonso Henriques, escrita em 1505 a pedido do rei D. Manuel por Duarte Galvão, companheiro e amigo de Albuquerque. O tema dominava as mentes cultas e os rumos das navegações; a utopia profética do Quinto Império passou a fazer parte da história do reino. E a mesma cruz que tinha aparecido ao imperador Constantino na batalha de Ponte Mílvio no ano de 312, que visitara D. Afonso Henriques em Ourique em 1139, reapareceria milagrosamente no Índico, guiando as naus e as investidas temerárias de Albuquerque! Maktub!

 

Milagre de Ourique Milagre de Ourique, tela de Frei Manuel dos Reis, 1665.

O segundo objetivo consistia em criar um novo espaço político e comercial na Europa, baseado na hegemonia dos soberanos fiéis a Roma, para o que era necessário garantir a estes o acesso privilegiado às fontes da riqueza disponíveis. Este objetivo só foi possível graças à combinação de duas áreas de conhecimento fundamentais: a cosmografia e o contorno do continente africano. Ambas exigiam conhecimentos teóricos e aplicações técnicas. As bases teóricas estavam há muito codificadas em tratados de astronomia que o poder de Roma olhava com suspeição, pois contrariavam os textos da Bíblia; a igreja condenava as novas teorias científicas mas permitia que os princípios fossem aplicados na prática para garantir o sucesso das navegações longínquas, porque navegar é preciso. Foi necessário esperar até 1488 para que se concretizassem as esperanças: Bartolomeu Dias achou o limite do continente africano, onde se juntavam os oceanos Atlântico e Índico, enquanto Pêro da Covilhã terminava o périplo por via terrestre até à Índia e à Etiópia, para espionar o território cobiçado, onde se imaginava que existiam cristãos, no fabuloso reino do tal Prestes João. Sem a viagem exploratória dos peregrinos Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva (este faleceu pelo caminho vítima da peste) e as informações que Pêro fez chegar ao rei D. João II, possivelmente que a viagem de Vasco de Gama não teria acontecido. Quando um navegador atrevido e experimentado, conhecido pelo nome de Cristóvão Colombo propôs ao rei de Portugal alcançar as terras de Cataio (China) e Cipango (Japão) navegando para oeste, em conformidade com a geografia do planisfério de Paolo Toscanelli (1474) e a do globo terrestre (Erdapfel, a maçã do mundo) que um explorador e companheiro de Diogo Cão, Martin Behaim, tinha exposto em Nuremberga (1491), o rei D. João II, que ignorava como os demais soberanos a existência do continente americano, já sabia que essa rota se baseava em intuições aleatórias e por isso apostou numa outra mais segura, há muito procurada e explorada pelos navegantes portugueses a um preço muito elevado para a coroa, a rota que contornava o continente africano. Depois da caminhada dos peregrinos e da viagem marítima de Bartolomeu Dias, foram necessários ainda mais dez anos de preparativos para concretizar a chegada da primeira expedição exploratória à Índia pela via marítima.

 

Pêro da Covilhã nunca mais regressou a Portugal, ficando por terras africanas ao serviço dos soberanos que o acolheram com curiosidade e simpatia; os portugueses retomariam contacto mais estreito com a Etiópia a partir de 1505 e o reino etíope transformou-se num polo africano de difusão de valores culturais ocidentais e latinos, incrementados a partir da ajuda militar oferecida pelos portugueses na luta contra os reinos rivais. O primeiro embaixador etíope chegou a Lisboa em 1513 e o cronista Duarte Galvão, o grande promotor da ideia do destino messiânico do reino, da versão quinhentista do Vº Império, morreu em 1517 a caminho da Etiópia, como embaixador de D. Manuel. Os primeiros missionários chegaram em 1520, ainda em vida de Pêro da Covilhã. Outra foi porém a história da fantástica e rápida expansão do comércio português a partir da Índia: desde as primeiras viagens que surgiu a ambição de alcançar outros mercados mais distantes, os da Malásia, da China e do Japão, por aquelas terras até então conhecidas como Cataio e Cipango. Os portugueses não tardaram a desembarcar em Ceilão a ilha mais cobiçada de todo o oriente (a Taprobana dos antigos). Em 1509 Diogo Lopes de Siqueira abordou a ilha de Samatra e criou os primeiros contatos comerciais que se prolongariam por noventa anos, até 1599. Avançando pelo arquipélago de Sonda alcançaram Timor, garantindo o negócio das madeiras exóticas que os chineses já dominavam séculos antes através de Malaca, em especial o do sândalo, madeira utilizada na decoração, na estatuária e na perfumaria. Pelos mesmos anos os portugueses abordaram a China nas proximidades de Macau, alcançaram a Austrália e visitaram outras ilhas do oceano Pacífico, em ousadas viagens exploratórias.

 

O sucesso comercial foi o suporte material da expansão cultural, em especial da difusão do cristianismo que arrastou para o Oriente novos conceitos, desde os valores familiares e os relativos à interação do indivíduo com a sociedade, ao vestuário e à alimentação, à justiça e aos direitos das pessoas, às regras sanitárias e higiénicas, até aos poderes necessários para garantir a segurança e o sucesso dos mercadores, desde a construção naval e a navegação às artes da guerra, enfim à língua, à produção de bens de consumo e às técnicas e planos da construção civil. Os valores ocidentais e latinos encontravam-se e confrontavam-se com outros valores de civilizações antiquíssimas e a religião cristã enfrentava os cultos de outras religiões profundamente enraizadas no tempo e nas mentalidades: um encontro de civilizações.

 

O destino escolhido para a primeira abordagem à Índia foi o porto da cidade de Calicute, o mais importante da costa do Malabar (hoje serve uma cidade com um milhão de habitantes no estado de Kerala) e a primeira sede administrativa dos negócios orientais foi a cidade de Cochim, onde se instalou o primeiro vice-rei D. Francisco de Almeida em 1505, mas a capital do espaço português no oriente (a denominada Índia Portuguesa que incluía os territórios que se estendiam de Moçambique ao extremo Oriente), instalou-se a partir de 1530 na cidade de Goa, sede do governo, ponto de encontro de civilizações (muçulmana, hindu e cristã), onde se decidiam no século XVI as estratégias do comércio, da guerra e da religião; terá chegado aos duzentos mil habitantes, era então a maior cidade da Índia, uma capital comercial, cultural e religiosa à medida do sonho de Afonso de Albuquerque. O Hospital Real, por ele fundado, foi a primeira instituição de assistência social no Oriente e o colégio de Santa Fé, edificado entre 1541 e 1544, foi o primeiro grande foco da cultura ocidental e latina, confiado aos jesuítas. Mas a cidade tão rapidamente cresceu quanto definhou e no século XVII já era apenas uma sombra do tempo da sua grandeza: a má qualidade e a corrupção dos administradores, a intolerância religiosa (a Inquisição chegou em 1560), uma imigração descontrolada de criminosos e degredados, a falta de planeamento urbano, epidemias e ocupações reduziram rapidamente a Goa Dourada, a Roma do Oriente, a uma decadente cidade de província, recheada de ruínas. Em 1655, num célebre sermão de sexta-feira santa pregado na igreja da Misericórdia em Lisboa, o padre António Vieira denunciava com a seguinte alusão: Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia por via de seu companheiro, que era mestre do príncipe (D. João Manuel, pai de D. Sebastião): e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo “rapio” na Índia se conjugava por todos os modos. (Sermão do Bom Ladrão)

 

Goa fora conquistada e reconquistada em 1510 por Afonso de Albuquerque. O capitão-mor e governador da Índia estendeu e consolidou o domínio português desde a ilha de Socotorá na saída do mar Vermelho, as cidades de Mascate e Ormuz, no golfo Pérsico (em 1507), até Malaca, porta de passagem obrigatória e estratégica para o oceano Pacífico, uma cidade cosmopolita que contava então 120.000 habitantes e que passou para as mãos dos portugueses em Julho de 1511. Ambicionava conquistar Meca, a cidade santa dos muçulmanos, para assegurar o controlo total do Mar Vermelho, mas a tarefa era demasiado ambiciosa para o poderio militar disponível e o governante, que não conseguiu o apoio necessário dos outros oficiais militares para os seus planos messiânicos, dirigiu definitivamente as investidas para outros objetivos quando falhou a conquista de Adém (em 1513). Foi no mar que os portugueses impuseram o seu principal domínio, graças ao poderio das frotas, obrigando todas as embarcações comerciais do oceano Índico a sujeitarem-se ao controle e às licenças (os cartazes) emitidas pelos governadores e capitães das fortalezas. Por outras cidades da Índia e em seguida pelo espaço das conquistas que de Malaca se estenderam até à China e ao Japão, os missionários entregaram-se à tarefa de construir igrejas, hospitais e colégios, outros tantos focos de irradiação da cultura ocidental e latina. Corporações religiosas e civis fundaram Misericórdias, uma criação tipicamente portuguesa que se espalhou por todo o Oriente; contavam-se mais de trinta no final do século XVII. Já ao longo do século XVI foram aparecendo dicionários e obras de divulgação religiosa e moral em sânscrito, tâmil, concani, chinês e japonês, impressas em tipografias que se instalaram a partir de 1553 em Goa e Cochim, logo de seguida em Macau e Nagasáki. Os poderes civis e religiosos mantinham uma colaboração estreita e eficiente para garantir o sucesso das respetivas empreitadas. Uns e outros estavam conscientes da vulnerabilidade por serem minoritários e emigrantes: o espaço de intervenção militar e comercial limitava-se a pequenos pedaços de orla marítima e insular distantes uns dos outros, onde o mérito e o reconhecimento do valor dos intervenientes dependiam de muitos fatores, por vezes perturbados pela intriga e a malvadez dos concorrentes. No continente, o poder Mogol impunha-se, a partir de 1520, como uma nova e emergente força política e militar de obediência islâmica sunita, consolidando o domínio do (atual) Paquistão até ao Bangladeche; a hegemonia do Grão Mogol no espaço indiano duraria desde então até à colonização britânica, que começou em meados do século XVIII através da Companhia Britânica das Índias Orientais.

 

Um dos governadores da fortaleza de Malaca foi Duarte Coelho Pereira, descendente bastardo do toscano Gonçalo Coelho – um dos capitães a quem o rei D. Manuel confiou o levantamento topográfico da costa brasileira em 1503, na companhia de Américo Vespucci. Duarte Coelho Pereira chegou ao oriente em 1506, foi embaixador, o primeiro português a abordar a Cochinchina (em 1523) e durante duas décadas no oriente deu provas de excelentes qualidades como militar e governante. Acompanhava Jorge Álvares nas primeiras incursões exploratórias por terras chinesas quando este faleceu em 1521 e deu-lhe sepultura junto ao padrão que o mesmo tinha erguido no refúgio clandestino da ilha de Tamão; D. João III escolheu Duarte Coelho Pereira como donatário da capitania de Pernambuco (em 1534, a Nova Lusitânia), a que teve maior sucesso em todo o Brasil. Era casado com Brites de Albuquerque, sobrinha do grande Afonso. Ainda estão de pé as ruinas da igreja de São Paulo, por ele fundada em 1512 e onde foi sepultado São Francisco Xavier. Outro dos escolhidos para donatário de duas capitanias foi o cronista João de Barros, um dos homens mais cultos e respeitados do reino, que nunca tomou posse delas, apesar de ter gasto a fortuna e ter perdido dois dos seus filhos em tentativas frustradas de colonização. Outros donatários de capitanias tinham sido militares e administradores no Oriente: Vasco Fernandes Coutinho esteve em Goa e Malaca com Afonso de Albuquerque, recebeu a capitania do Espírito Santo e lá gastou sem sucesso toda a sua fortuna; Francisco Pereira Coutinho, homem rígido e severo por terras africanas e indianas – o rusticão - perdeu tragicamente a vida na capitania que lhe coube em prémio, a da Bahia.

 

Os comerciantes portugueses alcançaram o Japão (que Marco Polo não visitou mas do qual teve notícias e divulgou com o nome de Cipango) ao longo do ano de 1543 e os pioneiros da façanha terão sido Fernão Mendes Pinto e os seus companheiros Cristóvão Borralho e Diogo Zeimoto, ao desembarcarem, quiçá em risco de naufrágio e sem autorização nem conhecimento do governador Martim Afonso de Sousa, numa das ilhas do arquipélago de Osumi, a de Tanegashima. A introdução da arma de fogo (o bacamarte) foi a primeira grande novidade técnica vinda do ocidente e que modificou por completo a arte e o sucesso militar naquele país que era então governado por senhores da guerra, ao jeito do feudalismo europeu medieval. Ainda nos nossos dias se comemora anualmente na ilha, com o Festival da Espingarda, esse primeiro encontro com os portugueses. A partir de 1547 os mercadores japoneses visitavam Malaca e no ano seguinte frequentavam Goa levando com eles, de regresso ao Japão, as primeiras novidades sobre o modo de vida dos forasteiros latinos. Os missionários jesuítas chegaram à cidade de Kagoshima no mesmo ano em que os seus companheiros chegaram ao Brasil, 1549. O comércio com os nanban jin, os “bárbaros do sul”, desenvolveu-se rapidamente, em menos de uma década, graças ao apoio estratégico de Macau e manteve-se por largos anos monopólio dos portugueses. Em 1581 um cartógrafo português, talvez o jesuíta Inácio Moreira, desenhava a primeira carta geográfica do Japão. Porém, a presença dos europeus em terras tão distantes e culturas tão diferentes sempre foi precária e recheada de imprevistos.

 

Igreja de S. Lázaro Igreja de S. Lázaro: O início da construção desta igreja data de 1557.
Serviu como Sé Catedral da diocese quando esta foi criada em 1575.
A atual fachada neoclássica data do século XIX.

A fixação dos portugueses em algumas partes do continente asiático foi difícil: os espaços então sob controlo do Grão Mogol indiano (atual Paquistão, Índia continental e Bangladeche) assim como a China, resistiram à presença dos novos forasteiros apesar das tentativas que se estenderam e falharam por mais de quarenta anos. O imperador mogol só permitiu o comércio com os portugueses a partir de 1537 e a criação de feitorias permanentes em Bengala a partir de 1577; em 1580 o imperador Akbar, tolerante e afável, pediu para se encontrar pessoalmente com os padres jesuítas do padroado português (de Goa) na nova e monumental cidade de Fathepur Sikri (entretanto abandonada e atualmente património da humanidade), nas proximidades da atual cidade de Agra, a norte da Índia. Porém, nada de relevante terá resultado deste encontro para a expansão das ideias ocidentais e latinas.

 

Também passaram muitos anos até se chegar a um entendimento duradouro com as autoridades do império chinês. O navegador Jorge Álvares partiu de Malaca em 1513 às ordens do capitão-mor Jorge de Albuquerque e fixou um padrão clandestino em Tamão (hoje chamase Lingding, no estuário do rio das Pérolas) sem mais consequências; o embaixador Tomé Pires, naturalista e boticário real, não teve sucesso e acabou preso em 1516. A China desconfiava das intenções dos forasteiros ocidentais que somente à custa de subornos conseguiam fixar-se esporadicamente em alguns pequenos portos. O missionário São Francisco Xavier faleceu em 1552 na ilha de Sanchoão, a caminho de Cantão, exausto após mais uma tentativa frustrada de instalar arraiais em terras chinesas. O acordo entre portugueses e chineses aconteceu em 1557 e contemplava uma espécie de arrendamento de um espaço no delta do rio das Pérolas, nas proximidades de Cantão, reinava Jiajing, o 12º imperador da dinastia Ming. Nesse mesmo ano um arrojado dominicano, frei Gaspar da Cruz, vindo de Goa e Malaca, por lá iniciou a divulgação do cristianismo (deixou-nos um texto delicioso, o Tratado das Coisas da China, escrito em 1569, depois do seu regresso a Portugal). Não tardaram a chegar os franciscanos, que deixaram por todo o extremo oriente marcas duradouras da sua passagem. Frei Paulo da Trindade (1570-1651) e frei Jacinto de Deus (1612-1681), franciscanos naturais de Macau, deixaram-nos obras importantes sobre a história do cristianismo no oriente (Conquista Espiritual do Oriente e Descrição do Império da China). Os jesuítas chegaram em 1563 e a cidade de Macau foi elevada a sede de um bispado em 1575. O primeiro hospital público, o Hospital dos Pobres, uma leprosaria e a Santa Casa da Misericórdia foram obras dos jesuítas a partir de 1569. O colégio de São Paulo, dirigido pelos jesuítas a partir 1594, tornou-se rapidamente numa instituição de ensino superior donde irradiou a cultura ocidental e latina pelo espaço do império chinês. Em 1600 os portugueses instalaram um entreposto comercial na ilha de Taiwan, a que chamaram Formosa, praça perdida para os espanhóis em 1642, que logo a entregaram aos holandeses, expulsos pelos chineses em 1661. Macau foi um caso único de sucesso político, cultural e comercial; no primeiro quartel do século XVII o pequeno território possuía a mais sofisticada fundição de canhões de todo o oriente, superior às de Cochim e de Goa, a de Manuel Tavares Bocarro – hoje enriquecendo o espólio de museus militares do mundo inteiro.

 

A China sempre foi um espaço interdito aos estrangeiros, os chineses consideravam-se o centro do mundo e desprezavam os forasteiros, essas criaturas estranhas com hábitos de vestuário e de alimentação bárbaros e grotescos. Até ao século XIX mesmo os chineses instruídos ignoravam o nome dos principais países ocidentais, pelos quais não tinham o mínimo apreço nem ponta de curiosidade. Com a criação da República Popular da China em 1949 e sobretudo com a revolução cultural iniciada por Mao Tsétung em 1966 é que a grande maioria dos cidadãos chineses teve conhecimento, mais pela negativa, da existência de outros países, classificados como amigos ou inimigos do povo chinês. Foram muito poucos os personagens estrangeiros que ao longo do tempo conseguiram o apreço e a admiração dos chineses. A presença dos portugueses, pelo seu reduzido número e por uma atuação genericamente discreta, nunca preocupou as autoridades chinesas, mesmo se, em momentos de alguma tensão (como em Dezembro de 1966) recaíram sobre eles as mesmas depreciações que se aplicavam aos povos “imperialistas e sanguinários”, inimigos da nação chinesa. Os portugueses permaneceram em Macau até 20 de Dezembro de 1999, quando aquele espaço foi devolvido à China após quatrocentos e quarenta e dois anos de convivência pacífica.

 

O império português do oriente foi um projeto ambicioso imaginado por Albuquerque como um grande espaço mercantil e cultural resultante de um desígnio ideológico e profético. O governador propunha uma massiva miscigenação de portugueses com mulheres indianas (os casados, denominação que ficou por séculos), criando uma população aculturada que servisse de apoio à empreitada comercial e política, uma verdadeira colonização, mas os nobres do reino recusavam a ideia de uma raça de mestiços que porventura pudesse ofuscar a dignidade e a qualidade da utópica pureza lusitana que estava na moda – o peito ilustre lusitano. A intolerância predominante no reino foi certamente o principal obstáculo à convivência pacífica entre portugueses, hindus e muçulmanos no outro lado do mundo. Albuquerque adoptou uma política de tolerância com hindus e muçulmanos, criando relações pacíficas com os maiores comerciantes do Oriente, mas a atitude conciliadora do governante com os muçulmanos xiitas não foi entendida no reino, antes fortemente contrariada pelos interesses particulares dos demais protagonistas que não partilhavam o ideal messiânico. A ideia não vingou; o império oriental manteria como modelo um projeto comercial agressivo, por onde a ambição não tinha regras nem limites e as empreitadas sucederam-se, por entre tragédias e sucessos. A pouca gente portuguesa (no reino contavam-se em 1527 pouco mais de um milhão e duzentas mil almas), muito disseminada pelo vastíssimo espaço da orla marítima oriental, sempre foi uma minoria tão vulnerável quanto arrogante e a intolerância foi dos maiores obstáculos à manutenção do império. A corrupção, a indisciplina, o enriquecimento ilícito, o nepotismo, o roubo e a ganância, pirataria, pilhagem, massacres de inocentes e vinganças, uma escravatura desregrada, sobretudo o fanatismo e a intolerância, ultrapassaram todos os limites e transformaram a epopeia num pesadelo, a cruzada em corso, os heróis em bandidos. O tribunal da Inquisição de Goa condenou à fogueira a irmã de Garcia da Orta em 1569, no ano seguinte ao da morte do médico e mandou exumar os restos mortais dele, que se encontravam sepultados na sé de Goa, para os queimar num aparatoso auto-da-fé em 1580. Os recursos humanos eram demasiado exíguos, fracos e sem virtude para manter honradamente um tão vasto império. O recurso à violência e ao espetáculo do terror piorou os resultados. Estas tristes exibições ocidentais e latinas foram porventura a imagem mais negativa de toda a presença portuguesa no Oriente. D. João III abandonara o norte de África para acudir às necessidades de investimento num comércio muito mais rentável, mas a fasquia tinha sido colocada demasiado acima das capacidades e da qualidade dos concorrentes. Em 1549 a feitoria portuguesa na Flandres, fundada em 1445, que se tinha mudado de Bruges para Antuérpia em 1499 e por onde se escoavam as mercadorias mais valiosas de África e da Índia, tinha fechado as portas. No último quartel do século XVI, quando o comércio português do Oriente começou a desmoronarse, a Espanha estava no auge do seu poder financeiro, com a abundância de ouro e prata que os galeões das Américas descarregavam em Sevilha. Porém, outras potências europeias emergentes cobiçavam os recursos da península ibérica arrogante, unificada pela mesma coroa a partir de 1580. No final do século XVI concediam-se em Goa graus académicos em artes, direito e teologia, mas também em medicina e cosmografia. O mesmo acontecia em Macau. Imprimiam-se livros em Goa, Cochim, Macau e Nagasaki, o que só viria a acontecer no Brasil no primeiro quartel do século XIX. Porém, o sucesso do intercâmbio cultural não sustentou a fraqueza militar, política e comercial.

 

A utopia e a ação de Albuquerque, que geriu os interesses portugueses no Oriente com atitude enérgica e o poder de um príncipe maquiavélico, inspiraram ambições e arrojadas iniciativas comerciais durante pouco mais de um século. Quando os holandeses e os ingleses, no primeiro quartel de seiscentos, com as suas companhias de comércio das Índias Orientais, se apoderaram dos espaços portugueses no Oriente, o império abandonava a competição. A perda de Ormuz às mãos dos ingleses e dos holandeses em Fevereiro de 1626 marcou o fim do domínio português nos mares orientais e o da hegemonia marítima nos demais oceanos. Passados poucos anos, restavam sobras de somenos importância. A coroa francesa nunca investiu em projetos de descoberta, deixando as iniciativas aos armadores particulares, mas em 1664 o poderoso e inovador ministro do rei francês Louis XIV, Jean-Baptiste Colbert, decidiu imitar os holandeses e os ingleses criando também uma Companhia das Índias Orientais, para tomar conta, com relativo sucesso, das poucas fatias apetitosas que ainda sobravam.

 

Passaram de meia centena as possessões e fortalezas portuguesas espalhadas pela península Arábica, Índia, Malásia, China e Japão, onde Portugal exercia plena soberania, sem contar as muitas feitorias e assentamentos comerciais onde não havia ostensiva presença militar (enumeradas no Livro das Plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, de António Bocarro, enviado ao rei Filipe III em 1635). Oliveira Martins precisa: Em certos pontos, como no Malabar e em Malaca, onde a política de Albuquerque levara à constituição de cidades portuguesas, havia propriamente Governo e Estado: uma colónia, no sentido comum da palavra. Mas tais exemplos eram exceções; a regra era a existência de uma fortaleza dominando uma cidade indígena, cobrando as páreas dos sultões da terra, e abrigando os navios que aí iam comerciar.

 

O comércio do oriente fez de Lisboa uma das maiores cidades da Europa: 100.000 habitantes em 1550, 250.000 no final do século XVI, (decrescendo para 165.000 habitantes em 1619). Só durante o reinado de D. Manuel zarparam de Lisboa para a Índia duzentas e trinta e sete naus. A rua dos Mercadores de então era o terreiro de uma verdadeira globalização, com gente de toda a Europa, de todas as raças e crenças, no meio de uma euforia provocada pelo exotismo das mercadorias e a ânsia da fortuna. Porém, depois do longo cerco de Goa pelos holandeses (1639), da perda de Malaca (1641) e de Ceilão (1657), da entrega de Negapatão (1658), da cedência de Bombaím aos ingleses como parte do dote do casamento de D. Catarina de Bragança com Carlos II (1662), o denominado império português do oriente declinou muito rapidamente. No final do primeiro quartel do século XVII pouco restava também do esforço dos cento e quarenta e dois jesuítas (dos quais setenta e um autóctones), de uma centena de franciscanos e algumas dezenas de dominicanos infiltrados na China e Japão, entusiasmados pelo sucesso comercial dos primeiros investidores e pela empreitada louca de São Francisco Xavier. Em 1650 os últimos padres foram expulsos do Japão e os cristãos resistentes passaram a viver na clandestinidade. O último bispo efetivo do Japão faleceu em 1625 e o último nomeado por D. João IV, o jesuíta André Fernandes, nunca chegou a ser confirmado pelo papa nem pisou terras nipónicas; a diocese (de Funai) já tinha sido extinta à data da sua nomeação. Faleceu em Lisboa em 1660.

Mapa-mundi oferecido pelo padre Matteo Ricci ao imperador da China. Mapa-mundi oferecido pelo padre Matteo Ricci ao imperador da China.

O catolicismo, através do qual se divulgou por mais tempo e mais intensamente a cultura ocidental e latina, não entrou no Oriente por iniciativa dos portugueses: tanto os primeiros franciscanos que acompanharam as viagens de Gama e de Cabral, como Xavier e os jesuítas nas ousadas investidas pela China meio século depois, já lá encontraram cristãos de longa data e tradição. Porém, a partir da intervenção dos missionários portugueses, através do Padroado da Ordem de Cristo, nunca mais deixou de haver continuidade na presença cristã pelo Oriente. Logo em 1510 havia um bispo, titular de Laodiceia, o dominicano D. Duarte Nunes, nomeado para o espaço do cabo da Boa Esperança até à Índia oriental, que se instalou em Goa em 1520. Quando o poder político se desmoronou, os valores culturais mantiveram-se sólidos e a igreja católica continuou a sua expansão sem o suporte comercial e militar que de início a protegeu. O recinto do Vaticano exibia esse sucesso, no tempo do último papa renascentista, Alexandre VII (reinou de 1655 a 1667), com a inauguração da monumental colunata de Bernini a simbolizar o poder e o sucesso da igreja dominando e protegendo o mundo. As nove dioceses católicas orientais do Padroado Português estendiam-se no século XVII até à China e ao Japão e na África oriental tinha a diocese da Etiópia (1555) e a de Moçambique (1612). Para além do poderoso espólio religioso presente até aos nossos dias por todo o Oriente, a língua portuguesa e a cultura neolatina infiltraram-se nas principais culturas orientais, todas elas exibindo até hoje nos seus vocabulários fonemas de origem portuguesa, assim como no quotidiano de pequenas comunidades que ainda falam dialetos do português, na identidade das pessoas, nos trajes e costumes tradicionais, nos nomes das embarcações de pesca da Malásia e da Indonésia, nas festas populares, na cor da pele dos descendentes de portugueses.

 

Os missionários portugueses, primeiro os franciscanos, depois os dominicanos, os agostinhos, os oratorianos e finalmente os jesuítas, vieram reacender no Oriente uma fé residual, obra de outros missionários muito mais antigos e quase esquecidos, criando novas estruturas religiosas, igrejas, conventos, hospitais e colégios que se ergueram para durar muito para além das empreitadas dos comerciantes e dos militares. Mais ousados que os comerciantes, eles foram autênticos bandeirantes desafiando todos os perigos para alcançar os povos mais distantes, muito longe da proteção dos outros intervenientes: eles alcançaram civilizações tão isoladas como as do Tibete, do Nepal e do Butão. No primeiro quartel do século XVII, o jesuíta António de Andrade, chegado a Goa em 1600, foi o primeiro europeu a atravessar as neves perpétuas do Himalaia e a fundar uma missão no Tibete em 1626. O padre Estêvão Cacella alcançou o reino do Butão e lá fundou uma missão no ano seguinte. Outros missionários, como o jesuíta João de Brito (1647-1693), empreenderam ações missionárias e sociais junto dos mais pobres e segregados da Índia, em Madurai, longe de qualquer interesse comercial e de qualquer proteção militar. O padre oratoriano José Vaz, um brâmane natural de Goa (1651-1711), dedicou vinte e três anos de apostolado à comunidade católica de Ceilão durante o período do domínio holandês; beatificado pelo papa João Paulo II em 1995, foi canonizado pelo papa Francisco em Janeiro de 2015. O papa Pio IX tinha canonizado em 1862 o franciscano Gonçalo Garcia, natural de Baçaim, filho de pai português e de mãe indiana, martirizado em Nagasaki em 1597. João de Brito foi canonizado pelo papa Pio XII em 1947.

 

A persistência da religião cristã permitiu a continuidade da influência linguística e cultural nas suas formas mais duradouras. Até ao final do século XVIII o português era ainda a principal língua comercial por todo o oriente. Há uma dezena de anos ainda se publicava em Ceilão um jornal em crioulo de português, mantido por uma igreja cristã. São doze os crioulos indo-portugueses identificados e cinco os crioulos malaio-portugueses, a maioria deles quase extinta. O papiá kristáng, um dialeto de origem portuguesa com mistura de fonemas malaios e chineses, ainda é falado por mais de cinco mil cidadãos em Malaca e Singapura e por mais alguns milhares dispersos por comunidades migrantes na Austrália e em Inglaterra. Um crioulo similar ainda subsiste como língua única dos seus utilizadores em Chaul, o kristí, dialeto da comunidade cristã de Korlai utilizado por um milhar de pessoas a sul de Bombaim, onde a presença portuguesa durou até 1740. Os últimos redutos do domínio português até ao século XX, os espaços do antigo Estado Português da Índia, mais os de Macau e de Timor, contribuíram grandemente para a continuidade da língua, mesmo que residual. Cerca de metade da população do atual estado de Goa (que é de um milhão e quinhentos mil habitantes) continua católica e a língua portuguesa, apesar de muito minoritária em relação às línguas concani e marata e mesmo ao inglês, ainda é falada por centenas de famílias. O diário O Heraldo foi publicado em português até 1983. Só como exemplos da permanência do padroado português pelo oriente, basta recordar que até 1847 os bispos da diocese chinesa de Pequim eram portugueses, até 1868 os bispos da diocese de Malaca e Singapura eram portugueses, como os bispos de Meliapor e de Cochim até 1951. D. António Barroso, bispo do Porto, um prelado que teve relevante intervenção nos primeiros tempos da República, tinha sido bispo de São Tomé de Meliapor. A igreja de São José em Singapura, construída na primeira década do século XX, ostenta na sua decoração o escudo português. A língua portuguesa é atualmente um dos três idiomas da República da Maurícia, um arquipélago habitado por um milhão e trezentas mil almas, situado a leste de Madagáscar, encontrado pelos portugueses em 1505.

 

Em Goa Velha, estão de pé e abertas ao público a sé catedral, as igrejas do Rosário, do Bom Jesus e de São Francisco, todas erguidas no século XVI. Em Macau subsistem as igrejas de São Lázaro, de Santo António e de São Lourenço, originalmente da mesma época. As ruinas da igreja do colégio de São Paulo são património da humanidade. Por muitos outros espaços do que foi o sonhado império português do Oriente resistem ao tempo vestígios eloquentes do que foi a obra do Padroado português, em especial a da atuação dos padres da Companhia de Jesus. Eles não foram os primeiros missionários portugueses no Oriente, mas foram os mais ousados e destemidos na propagação do cristianismo, seguindo o exemplo de São Francisco Xavier. O padre Francisco de Sousa escreveu em 1707 a história da grande bandeira dos jesuítas pelo Oriente em dois volumes, desde a chegada dos pioneiros até 1585: Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa. Franciscanos, dominicanos e oratorianos seguiram de perto as investidas ousadas e muitas vezes temerárias dos missionários da Companhia de Jesus.

 

Um dos personagens mais relevantes da implantação da cultura ocidental e latina na China foi o jesuíta Matteo Ricci (1552-1610), cientista, matemático e cartógrafo, o primeiro europeu a criar um intercâmbio científico e cultural com o Oriente ao mais alto nível, entre os intelectuais e junto da corte imperial chinesa. Ricci formouse em Itália e veio para Portugal em 1577, aos vinte e cinco anos, para aperfeiçoar os conhecimentos de português na Universidade de Coimbra. Partiu para Goa em 1578, integrado nas missões jesuíticas do padroado português e foi ensinar latim e grego no colégio de Cochim (hoje a maior aglomeração urbana do estado de Kerala, no sul da Índia), enquanto estudava teologia, para vir a ser ordenado sacerdote em 1580. Em 1582 foi enviado para Macau (a diocese tinha sido fundada em 1575, desmembrada da de Malaca), a fim de aprender a língua chinesa e no ano seguinte, juntamente com outro missionário o padre Miguel Rugieri, fundava a primeira missão na China, em Zhaoqing, dependente do colégio dos jesuítas de Macau. O colégio Madre de Deus, fundado na origem pelos franciscanos viria a ser, a partir de 1594, com o nome de colégio de São Paulo e já sob a tutela dos jesuítas, uma instituição de altíssima qualidade: aí se ensinava filosofia, teologia, matemática, geografia, astronomia, latim, português, música e artes, uma verdadeira instituição de ensino superior, foco de difusão da cultura ocidental por terras chinesas e dos seus aliados.

 

Jesuíta Matteo Ricci O jesuíta Matteo Ricci adotou os
hábitos e costumes dos letrados
chineses para melhor dialogar
com os seus interlocutores. Foi
o primeiro europeu a construir
um observatório astronómico
na China.

Ricci adotou os hábitos e os costumes do país, a indumentária dos altos fun- cionários e dos letrados, entusiasmouse pela cultura chinesa, estudou-a e divulgou-a. Os franciscanos, os primei ros missionários católicos do Oriente, assim como são Francisco Xavier, tentaram de início a abordagem catequética através de uma imagem de simplicidade e de pobreza, o que não teve sucesso na China nem no Japão; rapidamente entenderam que a nova doutrina teria que se impor como uma ideologia de homens cultos e bemsucedidos, respeitados e generosos, capazes de seduzir o povo pelo sucesso pessoal e pela autoridade que tinham sobre ele. Em 1589 Matteo Ricci introduziu o calendário gregoriano na China e em 1594 traduziu para latim os quatro livros do Cânone do Confucionismo, permitindo pela primeira vez o acesso dos ocidentais à filosofia de Confúcio (551-479 ac).

 

Nesse mesmo ano o jesuíta decide viajar até Pequim, para junto do poder central da China, mas fica-se por Nanchang (hoje uma cidade com dois milhões de habitantes, capital da província de Jiangxi), onde intensifica os contatos com intelectuais chineses e escreve em 1595, em chinês, o Tratado sobre a Amizade, para dar a conhecer aos chineses a sabedoria ocidental, livro que teve um imenso sucesso entre os intelectuais. No ano seguinte escreve o Método de Aprender de Cor, um tratado sobre a memória e um método para aprender a memorizar a tradição oral segundo a lógica ocidental e publica ainda um catecismo mais elaborado intitulado Verdadeira Noção de Deus. Finalmente chega a Nanquim em 1598, já nomeado superior dos jesuítas na China e em 1600 está em Pequim, sendo recebido pelo imperador no ano seguinte. O encontro era vital para a fixação dos jesuítas na China e os missionários que acompanhavam Ricci ofereceram quantidade impressionante de presentes ao imperador Wanli (o 14º da dinastia Ming), qual deles o mais maravilhoso e original, mas o que mais impressionou o soberano foi um mapa-mundi desenhado pelo próprio Ricci, que mostrava pela primeira vez a China “no meio” das outras nações do planeta. Os chineses sempre consideraram o seu país como “o centro” do mundo e o presente, vindo de um estrangeiro, entusiasmou o imperador.

 

Os jesuítas foram autorizados a construir uma residência, a abrir colégios e divulgar a cultura cristã, para o que até beneficiaram da generosidade imperial. Em 1605 Matteo Ricci estabeleceu contatos com a comunidade judaica local e iniciou a tradução para chinês dos Elementos de Euclides, permitindo assim aos chineses o acesso ao método da lógica dedutiva, à álgebra e à geometria ocidentais. Traduziu para chinês as principais orações do ritual católico e os princípios da moral cristã, auxiliado pelos padres portugueses que, em proveniência de Macau e de Goa, reforçaram a presença católica no império chinês. Em 1607 tentou socorrer o confrade Bento de Góis, que terminava uma das maiores aventuras de que há memória: o caminho por terra de Goa a Pequim, qualquer coisa como cinco mil quilómetros de carreiros. Exausto e doente, o jesuíta açoriano (nasceu em Vila Franca do Campo) não resistiria ao esforço e aos percalços da caminhada e morreu aos quarenta e cinco anos sem alcançar o destino, na cidade de Suzhou, a meio caminho entre Macau e Pequim. Nos últimos anos de vida, entre 1608-1610, Ricci redigiu a sua obra mais famosa e compêndio de referência para todos quantos pretendiam conhecer a China: A Entrada da Companhia de Jesus e do Cristianismo na China. Faleceu aos cinquenta e sete anos e o imperador autorizou que fosse sepultado em solo chinês, privilégio raro, já que os estrangeiros que faleciam na China tinham que ser enterrados fora do território (eram transladados para Macau). A comunidade cristã por ele formada cresceu sobretudo entre as elites intelectuais, ultrapassando os dois mil e quinhentos batismos. Ele é considerado pelos chineses um dos mais notáveis e brilhantes homens da história, o mestre do grande ocidente. No Museu da História da China, em Pequim, um dos maiores e mais extraordinários do mundo, só dois ocidentais mereceram figurar entre os grandes construtores do império: Marco Polo e Matteo Ricci.

 

O padre João Rodrigues, natural de Sernancelhe (1560-1633), embarcou para o Oriente muito jovem, pelos catorze anos e lá ingressou na Companhia de Jesus; fez os estudos de filosofia e teologia no colégio jesuíta de Nagasaki, foi ordenado padre em Macau e tornou-se um dos maiores conhecedores ocidentais da língua japonesa. Ele compôs o primeiro dicionário japonês-português (1603) e escreveu a primeira gramática da língua japonesa (1604). Para além de escrever uma história do cristianismo no Japão, que não é apenas uma história de religião mas uma verdadeira enciclopédia da cultura nipónica, o padre foi também comerciante, diplomata, político e intérprete junto dos estrangeiros que demandavam o país do sol nascente. A carreira promissora do padre terminou em 1610, no momento de um incidente infeliz com a nau do trato Nossa Senhora da Graça, também conhecida como Madre de Deus, destruída pelos japoneses na baía de Nagasaki, depois de um incidente mal resolvido em Macau. Em retaliação pela morte de soldados e marinheiros japoneses, a maioria dos padres foi expulsa do Japão e o comércio declinou. A presença dos missionários portugueses em Nagasaki terminou em 1639 e a história da vida deste jesuíta inspirou o romance Shogun de James Clavell, que deu origem à série televisiva e ao filme com o mesmo nome em 1980.

 

Outro jesuíta que desempenhou um papel preponderante na China foi o padre Tomás Pereira (1645-1708), natural de Famalicão, que chegou a Goa com o vice-rei D. João Nunes da Cunha em 1666, ainda noviço, aos vinte e um anos, onde completou os estudos seguindo depois para Macau em 1672. Músico, astrónomo, matemático e diplomata, frequentava desde 1680 a corte do imperador Kangxi (o terceiro da dinastia Qing) e fez parte da delegação chinesa que assinou em 1689 o primeiro tratado de paz com uma nação europeia, a Rússia de Pedro I o Grande, soberano que modernizou e abriu o seu país à influência ocidental. O jesuíta introduziu na China a música erudita europeia, construiu o primeiro órgão de tubos e montou o primeiro carrilhão numa igreja chinesa. Apesar de ter desempenhado a sua ação já numa fase decadente do poder económico e cultural português no oriente, o seu contributo para o intercâmbio cultural com a China foi brilhante, no tempo do reinado do mais extraordinário imperador de toda a história chinesa.

 

Franciscanos como frei Paulo da Trindade e frei Jacinto de Deus, nascidos em Macau, foram notáveis divulgadores da ação missionária dos portugueses pelo oriente, em especial os das diferentes custódias da ordem a que pertenciam, pioneira na evangelização, já que desde as primeiras viagens à Índia foram os frades menores quem asseguraram o apoio religioso às frotas e aos primeiros núcleos de emigrantes. O choque cultural com as tradições chinesas provocou graves desentendimentos entre os missionários das diversas ordens religiosas e originou intervenções intempestivas do governo da igreja romana, o que levou por várias vezes à interdição temporária da prática cristã.

 

O cristianismo continuou na China através da intervenção dos padres franceses, até que em 1834 as dioceses chinesas foram desvinculadas do padroado português, restando somente Macau, donde tinha irradiado o cristianismo para todo o território chinês e da qual dependia também a igreja de Timor até à criação da primeira diocese em Dili (1940), por insistência das autoridades portuguesas no ano da grande exposição do mundo português e da comemoração dos oitocentos anos da nacionalidade. A diocese de Macau, que mantém atualmente uma universidade (Universidade de São José) em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, depende hoje diretamente da Santa Sé e conta cerca de vinte e nove mil fiéis espalhados por nove paróquias e missões. A China conta hoje cerca de um milhão e meio de católicos, um número muito reduzido dada a dimensão demográfica chinesa, aproximadamente o mesmo número de cristãos que em Ceilão (mas o Sri Lanka tem vinte milhões de habitantes e a China conta cerca de mil e trezentos milhões). Existem duas arquidioceses (Pequim e Nanquim) e duas dioceses (Hong Kong e Macau). No Japão contam-se atualmente cerca de meio milhão de católicos numa população de cento e vinte e cinco milhões e meio de habitantes. O país tem três arquidioceses (Tóquio, Osaka e Nagasaki) e catorze dioceses, algumas com menos de cinco mil aderentes. A génese e a continuidade desta presença cristã pelo oriente até aos nossos dias é indissociável da ação pioneira dos missionários portugueses e do padroado ultramarino. A primeira diocese chinesa foi a de Macau, criada em 1575 e a primeira diocese japonesa foi a de Funai, criada em 1588 (extinta em 1625 e restaurada como arquidiocese de Tóquio em 1891).

 

A presença portuguesa no oriente fez-se ao ritmo de um tremendo frenesim, sempre em guerra contra alguém, reformulando a cada oportunidade novas estratégias diplomáticas e comerciais, com milhares de navios costeiros, fustas, paraus e juncos correndo as costas e com centenas de naus pelas grandes rotas do Atlântico, do Índico e do Pacífico, de Lisboa ao Japão, dando nova vida a meia centena de cidades, feitorias e entrepostos que se conquistavam e se perdiam por vezes ao sabor das monções. Os mais ousados cidadãos do reino lá encontraram o espaço ideal para exibir valor e satisfazer ambições. Outros menos felizes perderam-se sem deixar rastos. Quantos foram e voltaram? Quantos por lá ficaram? Ninguém jamais calculou quantos morreram em viagem nem quantos a guerra e a morte mataram. No meio de tanta guerra e confusão, os missionários conseguiram ressuscitar antigas comunidades cristãs e implantar novas estruturas que duram até aos nossos dias. A nossa história conta muitas miudezas e alguns momentos de glória – momentos sublimes de grandeza. A aventura oriental, que nasceu de um projeto profético assumido e que criou riquezas pessoais fabulosas, foi desastrosa financeiramente para o reino mas, como escreve Oliveira Martins, a nossa ruina foi o preço do maior ato da ci- vilização nos tempos modernos.

 

O maior génio da nossa identidade, o padre António Vieira, um mestiço irreverente, no meio do maior descalabro da nação, pregando em Roma na década de 70 do século XVII, imaginava ainda para os portugueses nada menos que o Vº Império do mundo e apregoava nos púlpitos da capital da cristandade que o planeta se tornara uma Feira Universal (expressão emprestada ao cronista João de Barros), qual Nova Malaca, cosmopolita e tolerante, no início de uma era de riqueza e de felicidade. O pregador augurava mais uma vez o reino consumado de Cristo, mil anos depois de um Apocalipse atribuído ao bispo Metódio de Olimpos o ter profetizado sob o poder de um soberano bizantino e etíope, imperador dos últimos dias, dominador do Islão e libertador de Jerusalém – o qual, após ter cumprido a missão profética, renunciaria à coroa. O rei amigo do pregador, que ocuparia o trono do Vº Império depois de ressuscitado conforme as mesmas profecias, já renunciara à coroa, para si e seus sucessores, havia vinte e cinco anos. Que faltaria então para que se cumprissem as profecias?

 

A língua portuguesa, diferenciada da galega a partir de 1290, quando Dinis a impôs como idioma oficial da corte e da administração do reino, consolidou-se em 1516 com a publicação do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e normalizou-se com as gramáticas de Fernão de Oliveira (1536) e de João de Barros (1540). A consolidação e normalização da língua aconteceram ao mesmo tempo que ela se disseminava pelos novos espaços onde os portugueses assentavam arraiais no século de ouro da expansão marítima, comercial e cultural. Permeável às influências linguísticas e fonéticas dos povos agregados, a língua assimilou quantidade impressionante de fonemas que a enriqueceram e globalizaram, enquanto fornecia às outras línguas novas sonoridades, num intercâmbio de exotismo sustentado e duradouro, numa diluição dinâmica e interativa. Surgiram mais de trinta idiomas crioulos de origem portuguesa (muitos extintos) por espaços continentais e arquipélagos da América, África, Índia, Malásia e China. Com a língua viajaram, nos rumos de ida e de torna-viagem, mitos e virtudes de civilizações diferenciadas, valores que se tornaram globais e talvez seja essa universalidade que anuncia hoje a alvorada de um sonhado e profetizado Vº Império. A euforia não terminou, nem a pátria se perdeu. O sonho continua.

 

 

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