António Santos Carvalho
Juiz Conselheiro 

 

 

1. A independência dos Tribunais pode ser concebida de um ponto de vista estritamente formal, coincidindo com a simples obrigatoriedade das sentenças, ficando os Juízes acorrentados a um certo número de constrangimentos de carreira os quais permitem a suspeita de que as decisões possam vir a ser tiradas sem a liberdade intelectual correspondente a um verdadeiro exercício de um poder do Estado, isto é, viciadas no crédito de imparcialidade, afinal de contas, aquilo que as torna típicas no conjunto ordenador de um Estado de Direito.

 

2. Por isso mesmo se diz que não há verdadeira independência dos Tribunais sem independência dos Juízes, sendo traços característicos da independência judicial a admissão na carreira a partir de regras objetivas e ordenadas a aferir do mérito profissional, em suma, a exclusão de critérios políticos na nomeação, a inamovibilidade, a irresponsabilidade pela decisão, e segundo alguns autores, a submissão a foro especial (dotadas as instâncias das características de independência e imparcialidade reforçadas) da responsabilidade civil e criminal dos magistrados judiciais, por dolo (ou negligência grosseira) na condução do processo.

Mais do que um problema jurídico, que o é, sem dúvida, trata-se também de uma questão cultural, reportada a uma determinada tradição e a um modo de encarar o valor Justiça, abrindo um confronto onde será possível elencar proximidades e pontos de fuga no debate jus-cultural.

 

3. Apenas por influência da doutrina de separação dos poderes, surgiu uma primeira, e apesar de tudo meramente formal, afirmação da independência dos juízes1. Assim, Hegel, já teorizador do moderno Estado burocrático, colocava o poder judiciário ao lado do poder de polícia, no quadro do poder governamental. Muito lucidamente, Kock, contemporâneo do filósofo, afirmou: «os juízes têm uma relação muito forte de subordinação pessoal, articulada através de toda uma série de vantagens e desvantagens pessoais, diretas, ou indiretas, quer através de penas disciplinares, de injunções rígidas e intoleráveis e da sujeição aos superiores mais próximos; quer através das transferências; ou por meio das nomeações precárias, simplesmente por destituição». Focou o autor do mesmo modo a subordinação dos juízes por meio da seleção, no momento da nomeação e pelos prémios e recompensas, num cenário, porém, de não terem direito às promoções, nem a serem colocados nos lugares de preferência, ou de não verem reconhecidos o longo tempo de serviço cumprido segundo o dever ou outros méritos.

 

4. Entretanto os modelos distintos de organização judiciária, segundo as diferentes óticas dos sistemas, desenharam conceitos de independência e responsabilidade judiciais que vão mudando de sentido se relativizam.

O modelo da legal profession, próprio da common law, aproximanos da ideia de professio jurisprudentiae: o papel da carreira é nele praticamente desconhecido. Em Inglaterra, por exemplo, a justiça de I Instância é confiada, na maior parte das vezes, a juízes sem formação jurídica Lower Judges que, por isso, se não destinam a exercer funções nas instâncias últimas, preenchidas por juízes escolhidos de entre os advogados com percurso prestigioso e longo tempo de exercício. Persistem portanto as mesmas relações e modos de ver tradicionais entre the bench e the bar, entre os advogados e juízes, que têm a mesma formação, pertencem à mesma corporação profissional, falam uma linguagem comum.

O princípio da independência judicial, que não é de direito constitucional escrito, em Inglaterra, mas sim nos USA, decorre duma miscelânea de regras legais, jurisprudênciais e costumeiras, reforçadas by professional tradition and public opinion (Smith).

É um facto cultural mais que um facto institucional. Os Juizes não são considerados Crown Servants (Holdsworth): se por um lado não estão sujeitos ao controlo da Coroa, tendo em vista a forma como desempenham as funções, por outro lado, e porque o Soberano está sujeito à lei, os juízes aplicam-na mesmo contra ele.

O exercício da judicatura não tomou assim a fisionomia do emprego público, antes representa o desenvolvimento natural do exercício da advocacia.

A independência dos juízes ingleses correspondeu, antes de mais, a um longo processo em que acabaram por libertar-se de qualquer dependência do poder político. Manifesta-se também na inexistência de qualquer controlo disciplinar ou hierárquico sobre eles.

A independência dos juízes no modelo de legal profession é, portanto, uma independência em sentido forte. Não sendo um valor em si mesma, serviu e serve ora para garantir a imparcialidade do juiz no processo, ora para favorecer, principalmente nos USA, a afirmação de um verdadeiro poder judicial2. É que o sistema político americano, potenciando controlos recíprocos dos poderes do Estado numa perspetiva que vem de Locke3 (que não distinguia poder judiciário do poder executivo), mediada por Blackstone, exige um funcionamento conjunto dos poderes do Estado. Cada um deles requer o concurso de um ou dos outros, sem que se subordinem ou anulem.

 

5. Em oposição aos valores tradicionais da professio jurisprudentiae, uma organização burocrática da ma- gistratura que se manifesta no juizfuncionário e na separação entre juízes e advogados, surgiu nos países de Lei escrita. Teve influência decisiva no modelo a experiência francesa entre o século XVIII e o princípio do século XIX.

Em primeiro lugar, a Assembleia Constituinte aboliu a patrimonialidade e comércio dos cargos judiciais, a transmissão destes por herança, como era permitido no Ancien Régime, e transformou os juízes franceses em assalariados do Estado4.

Em segundo lugar, a tripartição dos poderes do Estado, consagrada na Constituição de 1791, visava não uma limitação recíproca, mas uma sintonia dos poderes executivo e judicial com o poder legislativo, este legitimado por delegação do povo.

Em terceiro lugar, a Revolução, introduziu, para evitar que o poder judiciário pudesse invadir o legislativo, as instituições do referé legislatif, obrigando o juiz na ausência de texto de lei explícito a dirigir-se, previamente, ao corpo legislativo para obter uma interpretação autêntica, e da Cour de Cassation, tribunal criado junto do Parlamento para anular os julgamentos que contivessem «uma contravenção expressa ao texto da lei».

Seguindo Montesquieu, se o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei, o princípio da separação de poderes não podia ser acolhido, na verdade, senão no sentido de não lhe reconhecer outra posição que subordinada ao poder legislativo.

Entretanto, as ordens dos advogados foram suprimidas, e o título proibido. Todavia, reconstituídas por Napoleão, breve levaram a um exercício liberal e livre da advocacia, com a consequente retomada da independência por parte dos advogados.

 

6. Enquanto isto, o modelo do juiz-funcionário institucionalizou-se, após uma muito curta experiência de juiz eletivo. A legislação napoleónica5 estruturou a magistratura de forma hierárquica, análoga à do exército. No cimo da pirâmide está o Grand Juge Ministre de la Justice, Presidente da Cassação e gestor da Organização Judiciária: apesar da separação posterior das suas funções, certo é que o Ministro da Justiça permaneceu a chave do sistema. E foi concebido e criado o Ministério Público, como um dos principais instrumentos de controle dos juízes, magistratura movível, a do Ministério Público, dependente e rigidamente organizada. Ao mesmo tempo, foi estabelecido um controle disciplinar severo dos juízes, e foram centralizados os mecanismos de acesso e progressão na carreira.

Assim, a legislação revolucionária, separado o poder judicial do poder executivo, subordinou-o ao poder legislativo, enquanto a legislação imperial permitiu a intervenção do poder executivo na administração da justiça.

Toqueville criticou com agudeza: A intervenção da justiça na administração não prejudica senão o comércio, enquanto a intervenção da administração na justiça deprava os homens e tende a torná-los ao mesmo tempo revolucionários e servis.

 

7. Pelo menos a imagem da imparcialidade é prejudicada pelo sistema da burocracia judicial, e dando-se conta disso o subsequente movimento liberal propôs garantir a independência dos juízes perante o poder. No século XX, já, inicia-se por fim um movimento, lento e por vezes conflituoso, que a par da inamovibilidade se dirige para a consagração constitucional da independência da magistratura.

Apesar de tudo, uma certa independência do juiz, por confronto com os outros funcionários do Estado, foi conseguida através da elaboração de estatutos específicos, com garantias suplementares, onde foi prevista uma responsabilidade disciplinar rígida em troca de uma certa imunidade no plano patrimonial6. Mas trata-se de uma independência em sentido fraco por contraposição com o sistema de independência dos juízes da common law.

E mantido, por inércia, nas Constituições, o conceito de «poder judicial», certo é que as magistraturas continentais, menos que constituídas por juízes politicamente estéreis, foram envolvidas numa operação que visou colocá-las ao serviço dos governantes por oposição aos governados. Faz sentido portanto falar-se não em poder judicial mas em serviço de justiça ou em autoridade judiciária, englobada num serviço público de justiça.

 

8. Entretanto, num sentido evolutivo novo, surgiram os Conselhos Superiores da Magistratura. Tem havido experiências díspares: umas vezes o Conselho tem atribuições tão só disciplinares, outras consultivas, mas também se lhes tem atribuído todas as medidas que direta ou indiretamente podem enfraquecer a independência judicial tais como as nomeações e promoções, as transferências, que são por isso subtraídas ao Ministro da Justiça, do governo.

O dinamismo dalguns dos Conselhos tem favorecido uma progressiva expansão dos poderes que lhes são atribuídos pelas Constituições em direção a um autogoverno dos juízes, garantia da independência e do bom funcionamento da magistratura. A concentração de poderes nos Conselhos Superiores da Magistratura corresponde a um aumento de poderes dos juízes e a uma independência no sentido forte do termo. De qualquer modo, a ausência de meios financeiros à disposição dos Conselhos Superiores da Magistratura arreda-os de um papel decisivo perante a atual crise da justiça e a eficácia do sistema judicial.

 

9. É neste contexto e sob este foco que a preocupação pela independência dos tribunais e dos juízes da RAEM se cruza com o texto seminal da Declaração Conjunta:

«o poder judicial da Região Administrativa Especial de Macau será atribuído aos Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau. O poder de julgamento em última instância na Região Administrativa Especial de Macau será exercido pelo Tribunal de Última Instância da Região Administrativa Especial de Macau. Os Tribunais são independentes no exercício do poder judicial, livres de qualquer interferência e apenas sujeitos à lei. Os juízes gozarão de imunidades apropriadas ao exercício das suas funções. Os juízes da Região Administrativa Especial de Macau serão nomeados pelo Chefe do Executivo sob proposta de uma comissão independente a integrar por juízes, advogados e personalidades de relevo locais. A sua escolha basear-se-á em critérios de qualificação profissional, podendo ser convidados magistrados estrangeiros em quem concorram os requisitos necessários. Os juízes só poderão ser afastados, com fundamento em incapacidade para o exercício das suas funções, ou por conduta incompatível com o desempenho do cargo, pelo Chefe do Executivo, sob proposta de uma instância de julgamento constituída por pelo menos três juízes locais nomeados pelo Presidente do Tribunal de Última Instância. O afastamento dos juízes do Tribunal de Última Instância será decidido pelo Chefe do Executivo sob proposta de uma comissão de julgamento composta por membros do órgão legislativo da Região Administrativa Especial de Macau. Das decisões de nomeação e de afastamento dos juízes do Tribunal de Última Instância da Região Administrativa Especial de Macau será notificado para registo o Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular».

 

10. Vejamos então: a independência dos tribunais, considerados como elementos constitutivos do poder judicial, deriva da conceção liberal da tripartição e separação dos poderes do Estado. Mas a questão da independência dos Tribunais retomou uma relevância acrescida com a afirmação paulatina do Estado de Direito Social, isto é, com a submissão e auto limitação dos poderes do Estado pelo Direito como sistema ordenado à concretização dos direitos humanos (liberdades individuais, direitos económico-sociais, das minorias, da mulher e da criança, da ecologia).
Edifício dos Tribunais de Segunda e Última Instâncias, de Macau.Edifício dos Tribunais de Segunda e Última Instâncias, de Macau.

11. A independência dos Tribunais consiste basicamente na possibilidade de decidirem com liberdade e imparcialidade. E sendo os juízes, que os constituem, titulares da função de julgar, que lhes cabe, a independência dos juízes é a situação que se verifica quando no momento da decisão não pesam sobre o julgador outros fatores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da decisão. Mas, como ensinou o Prof. Doutor Castro Mendes7 a independência dos tribunais, como órgãos de soberania, não coincide necessariamente com a independência dos seus titulares. Na verdade, aquela pode ser vista apenas de um ponto de vista estritamente formal tendo como consequência jurídica o acatamento obrigatório das sentenças independentemente das características do processo decisório.

Sob o ponto de vista de um Estado em que as instituições sejam regidas pela preocupação de eliminar o arbítrio, fazendo coincidir a obra do bem comum com a afirmação de pontos de vista plurais num confronto regulado, as coisas não se passarão assim, e à independência dos tribunais corresponde a liberdade no processo decisório, logo a verdadeira independência dos juízes.

Anotemos que os fatores suscetíveis de afetarem a liberdade de julgamento podem existir no confronto do juiz com os demais poderes públicos; com certos movimentos de opinião quer de origem nos grandes meios de comunicação social, quer nos grandes grupos económicos; com uma, outra ou ambas as partes. Têm frequentemente natureza afetiva, ou intelectual e ideológica, cultural ou socio-política. Podem Incidir sobre um juiz em concreto, ou sobre a magistratura no seu conjunto. Àquele cercam-no emocional e pessoalmente, a esta é caso de lhe ameaçarem um futuro de desrespeito e dureza social.

 

12. Independência e imparcialidade serão aspetos de uma só realidade? Os juízes são independentes para que possam ser imparciais? Ou, são independentes para que possam ser livres, sendo a imparcialidade apenas um dos critérios métricos da referida liberdade de decisão?

Se partirmos do princípio de que os juízes devem ser livres para ser imparciais, a questão de responsabilidade do juiz decairá necessariamente em aspetos disciplinares ou de avaliação deontológica. Na verdade, segundo este ponto de vista, a imparcialidade estará em linha com os valores que estruturam o paradigma ético-profissional, isto é, a imparcialidade, para concretizar-se, depende do modelo donde emerge, do modo característico do seu próprio exercício: saber o que seja ou não a imparcialidade será assim assunto do colégio dos que elegem e escolhem esse objetivo de vida (profissional): serem imparciais.

Se partirmos do princípio de que a independência potência a liberdade de decisão, e que a imparcialidade é critério da medida dessa liberdade, a questão de responsabilidade do juiz derivará necessariamente para um plano onde terão de ser considerados modelos de responsabilidade civil.

Em todo o caso, aquilo a que se poderá chamar prerrogativas da magistratura, como a inamovibilidade e a irresponsabilidade pelas decisões, são medidas de proteção dos juízes que se propõem remover do processo de juízo fatores eventualmente condicionantes da liberdade de despacho e julgamento quer provenham do aparelho de Estado, quer provenham do concreto destinatário da justiça, quer difusamente da própria comunidade.

 

13. De qualquer das formas, pode avançar-se, desde já, um quadro conceptual de independência da magistratura judicial distinguindo entre independência substancial; independência pessoal; independência coletiva ou externa; independência interna. Por independência substancial, entende-se a circunstância de um juiz, no exercício das suas funções, estar submetido apenas à Lei e à sua consciência. Por independência pessoal, entende-se a circunstância de um juiz ter garantida a inamovibilidade e a perpetuidade do cargo. Por independência coletiva ou externa, entende-se a subtração ao controlo do executivo dos mecanismos de transferências, de fixação das retribuições e reformas e da concretização da disciplina. Por independência interna, entende-se que o juiz não tenha que obedecer direta ou indiretamente a pressões vindas de outros juízes, tendo em vista o exercício jurisprudência.

Os sistemas jurídicos contemporâneos, segundo uma perspetiva comparatística, garantem em maior ou menor medida estes quatro tipos de independência, nos já referidos dois modelos fundamentais da organização da magistratura judicial existentes: O sistema da «legal profession», próprio dos países da Common Law; O sistema de carreira judicial, próprio dos países de Lei escrita.

O primeiro caracteriza-se, como vimos, por uma garantia-extensa da independência dos juízes, não havendo distinção entre juízes e advogados, nem carreira judicial. Os magistrados estão subtraídos ao mecanismo da responsabilização civil, antes se submetem a regras deontológicas e a uma concretização da responsabilidade disciplinar igual para todas as profissões da comunidade dos juristas.

O segundo caracteriza-se por uma garantia-fraca da independência dos juízes, pela diferença profissional entre juízes e advogados, pela existência de uma carreira judicial, estando normalmente os magistrados judiciais submetidos às regras da responsabilidade civil. A responsabilidade disciplinar segue-lhes modelos e procedimentos paralelos aos do funcionalismo público: não têm verdadeira proeminência os juízos de valor deontológico, a disciplina ordena-se pela noção de regularidade do serviço público e menos pela adesão do comportamento às boas normas do exercício profissional. Em suma: a Lei determina os requisitos e as regras de recrutamento dos juízes dos tribunais de I instância; no recrutamento dos juízes dos tribunais judiciais de II instância releva o mérito curricular; o acesso ao Tribunal de Última Instância, faz-se nos termos que a lei determina. E um dos requisitos de qualidade científica, para o exercício das funções de juiz de Direito, é o da frequência, com aproveitamento, de cursos e estágios de formação. Há uma supervisão do mérito dos juízes de Direito, frequente, que influi na progressão da respetiva carreira profissional.

Não sem que este último aspeto do modelo traga problemas práticos para a ordem do dia: longe de ser no sistema um fator de correção de desvios funcionais, de otimização dos serviços ou de unificação tendencial da praxis judiciária pode muito bem ser, antes pelo contrário, um sinal de contradição no seio do próprio poder judicial – «elemento de pressão (nuns casos); freio à independência (noutros); estímulo às mais variadas rivalidades (sempre)».

 

14. Não sofre dúvida estar em vigor em Macau um catálogo de direitos, liberdades e garantias, e direitos análogos, de última geração, com regime e severa força jurídica. Mas nem é preciso ir por aqui para se defender um perfil de independência judicial, em Macau, radicando-o no direito ao juiz pois decorreria sempre do suposto básico do Estado de Direito que o ordenamento aqui acolhe, sem contradição.

Em todo o caso, a Lei-Básica consagra expressamente a independência dos Tribunais, garantida pela inamovibilidade dos juízes e pela sua não sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever lógico de acatamento das decisões judiciais proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores. Também os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões salvo as exceções consagradas na lei, isto é, a título de dolo na condução do processo8.

Estão fixadas as áreas de recrutamento e as qualificações profissionais, quer para os magistrados de primeira, quer de segunda instância, como já vimos, e em moldes que podem considerar-se revestidos de objetividade. Porém, será de diagnosticar um risco de peso externo excessivo nas nomeações ainda que sejam marcadas por uma tradição de lealdade ao foro. Esta resulta dos objetivos político-sociais da Declaração Conjunta, Anexos e Lei-Básica.

E se na verdade é inconveniente um orgão de gestão da magistratura de raiz corporativa, que não salvaguarda a independência interna dos juízes, também uma influência exterior excessiva, por exemplo, do executivo, prejudica a independência externa da magistratura.

 

15. No elenco dos défices de independência que fomos apresentando, não se vislumbra nenhum maior entrave à independência substancial porém que o de soluções contrárias à perpetuidade do cargo. Que será, com efeito, uma inamovibilidade de curta duração? Não corresponderá mesmo a algo vazio de conteúdo? Podemos aceitar que o juiz de Macau tem a garantia de ser independente perante os demais poderes públicos, os movimentos de opinião, pressões sócio-económicas e as partes litigantes; que a magistratura no seu conjunto é basicamente independente, mas podem ser de recear certos casos singulares, onde não deixe de haver risco da perda da liberdade de decisão.

É que as características de uma independência judicial em sentido fraco, amarrada à tradição em que radica, podem e devem ser corrigidas, garantindo-se aos juízes de Macau o direito a uma carreira, à tranquila e segura perpetuidade do cargo, eliminadas assim interferências negativas de fatores culturais de peso, difíceis de contornar.

 

16. Entretanto, se uma dinâmica social fabricada impuser uma reclamação pelos residentes de um sistema de tribunais regido pelo modelo e critério do custo-benefício e não pela – digamos assim – madura duração da liberdade de julgar, o ordenamento jurídico de Macau sofrerá as consequências da atracão inevitável pelo modelo da legal profession, que permanece na vizinha Hong Kong.

O que possa significar uma saída deste tipo para a manutenção da tradição jurídica da RAEM que, quer se queira quer não, é o principal fator da sua autonomia, é de todo imprevisível. Espero, portanto, que venha a con- solidar-se no ordenamento e na cultura jurídica de Macau uma verdadeira e forte independência estatutária dos juízes, a que está aberta a Lei-Básica: o alargamento das modalidades de responsabilização civil dos juízes, como válvula de escape ao excesso de sentido do controlo disciplinar, caracteristicamente burocrático, pode contribuir, em definitivo, para a perfeição do edifício legal9.

 

 

Bibliografia

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  • Mendes, João de Castro, Nótula Sobre o Artigo 208º da CRP, in Estudos Sobre a Constituição, vol. III., 1979, pp. 635/660. Munro, Colin, Martin Wasik, Sentencing, Judicial Discretion and Training, Sweet and Maxwell, Londres, 1992.

  • Santos, Boaventura de Sousa, A Justiça e a Comunidade em Macau: Problemas Sociais, a Administração Pública e a Organização Comunitária no Contexto da Transição, in Administração, nºs. 13/14, vol. IV, 1991.

  • Santos Carvalho, António A.P., Crítica da Responsabilidade Judicial, ISCTE-IUL, Lisboa 2008. Smith, S. A. de, The Constitutional and Admnistrative Law, London, 1971.

  • Welsley-Smith, Peter, Judges and Judicial Power under The Hong Kong Basic Law, in Guenther Doeker-Mach and Klaus A. Ziegert (Eds.) Law, Legal Culture and Politics in the Twenty First Century, Franz Steiner Verlag: Stuttgart 2004, pp. 465-486.

 

  1. O poder judicial dizia-se, até então, exercido em nome do Soberano, por tribunais independentes, não sujeitos a outra autoridade que não a da Lei, mas tal não correspondia à realidade vivida.

  2. A explosão do poder judicial nos USA reverteu porém na crítica do Government by judiciary.

  3. Locke, John, Two Treatises on Government / Book II: An Essay Concerning The True Original, Extent And End Of Civil Government [The Second Essay ] (1680-1690).

  4. Art. 2º da Lei de 16/24 de Agosto de 1790.

  5. Lei de 20.4.1910, sobre Organização Judiciária.

  6. A responsabilidade civil do Juiz, prise à partie, tem sido, a maior parte das vezes, vista como um remédio a ter em conta com precaução.

  7. Mendes, João de Castro, Nótula Sobre o Artigo 208º da CRP, in Estudos Sobre a Constituição, III vol., 1979, pp. 635/660.

  8. A ação deve ser proposta contra o Estado (RAEM), que acionará, de regresso o magistrado, se assim o entender.

  9. Santos Carvalho, António A.P., Crítica da Responsabilidade Judicial, ISCTE-IUL, Lisboa 2008, https://antoniosantoscarvalho.files.wordpress.com/2009/04/asc_slides_190409_vrucha_v42.ppt.


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