Margarida Conde
Mestre em Língua e Cultura Portuguesas, na variante de Estudos Linguísticos pela Universidade de Macau
I. PROPÓSITO
“O lugar onde está a família é o sítio de onde se é.”
In, O Olhar de Henrique de Senna Fernandes: Fragmentos
Levando em conta o enorme sucesso que Senna Fernandes obteve primeiro em Macau, posteriormente em Portugal e no exterior mundo lusófono, nomeadamente no Brasil, pretendemos, com este trabalho, destacar alguns pontos centrais da identidade macaense concebida pelo romancista, através da construção de personagens e de espaços e ambiências de Macau que servem essencialmente de pano de fundo aos percursos das personagens centrais – Leontina das Dores e Lucas Perene –, e ao estatuto social de duas famílias de relevo, protagonizadas nesta narrativa.
As conjunturas ambientais, que destacamos no romance “Os Dores”, evidenciam o aspeto económico e sociocultural das personagens e, por contiguidade, as vertentes por que tem passado a sociedade macaense, protagonizada através das figuras em questão. O enfoque do nosso trabalho tem como propósito o esboço de um retrato da comunidade e simultaneamente da própria cidade que, com os seus macros e micros espaços, permite ser apontada como uma real protagonista. Entendemos que estudar as questões inerentes à significação do espaço pode levar também ao delineamento, mesmo que de forma não factual, de um panorama histórico da realidade social do início do século XX, que Senna Fernandes recria de uma forma artística, configurando espaços anteriores aos atuais ou, ainda, o retrato de alguns aspetos de Macau que têm prevalecido perante a modernidade.
Adotamos o conceito de Lins na distinção entre espaço e ambiência: “Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa.”1 Seguimos António Dimas na elucidação sobre o conceito de Lins quando diz que “o espaço é denotado; a ambientação é conotada. O primeiro é patente e explícito; o segundo é subjacente e implícito. O primeiro contém dados de realidade que, numa instância posterior, podem alcançar uma dimensão simbólica.” 2
II. RETRATOS DE UMA COMUNIDADE
1. Espaço e condição social das famílias protagonizadas
Macau aparece retratado em microcosmos sociais onde as personagens e respetivas famílias são neles distribuídas segundo dois princípios de diferenciação: o económico e o cultural. A relação entre espaço e a condição social é bem notória, logo no início da obra, quando a protagonista, Leontina, é descoberta por Policarpo e pelo seu filho, Floriano: “Que mistério, aquele, o de uma garotita de traços caucásicos, no meio da petizada chinesa?”; para mais adiante se vincar a urgência de “Tirá-la daquele ambiente”3 e integrá-la num espaço adequado à sua natureza étnica.
Salientamos que o tempo histórico é o da época em que a cidade se dividia em duas zonas: a cristã e a chinesa, com contornos físicos bem delineados, assim como as ambiências humanas e culturais bem definidas. As duas comunidades habitavam espaços próprios que não se cruzavam, mas que no decorrer da narrativa se vão entrelaçando conforme a miscigenação vai sucedendo, situação de Angélica, irmã de Lucas Perene, que desapareceu na cidade chinesa com um jovem violinista chinês; e nas situações de marginalização de personagens, caso de Lucas Perene e Leontina das Dores. Do mesmo modo, as famílias macaenses são integradas também num espaço condizente ao seu status económico e social.
Igreja de Santo Agostinho.
1.1. Nesta sequência, o lar da família Policarpo, para onde foi levada Leontina, protagonista central, na condição de crioula da casa, aparece-nos situado na Calçada do Tronco Velho e a descrição dos trajetos diários, efetuados em espaços circundantes da cidade, como a Rua Central, a zona dos Mouros e a Igreja de Sto. Agostinho, indicia que os Policarpos são delineados pelo autor como uma família de classe média. Assim o revela também a descrição da sua habitação constituída por rés-dochão e primeiro andar, com pedra de granito à entrada, indicadores de certa abastança e posição social.4
Rua do Padre António.
E dentro de casa, tal como na sociedade, perduram as hierarquias. Na casa de dois pisos dividida em duas alas, o narrador focaliza a ala das mulheres, com destaque para o quarto das filhas, o quarto de costura, a cozinha, o quintal e um quarto de arrecadação paredes-meias com a dependência das criadas, o grupo habitacional mais baixo. O quarto de Leontina, cubículo, onde cabia uma cama de ferro estreita e um armário diminuto, localiza-se numa divisória à parte, não se enquadrando em nenhum dos grupos sociais que a habitam: ”A única diferença que tinha dos verdadeiros criados, era de comer na cozinha, numa mesinha à parte, os restos da comida dos patrões, porque era uma crioulabranca.” 5
1.2. A mansão dos Madrugas, situada na rua do Padre António, zona de macaenses enriquecidos, chama a atenção pela beleza arquitetónica como convém a uma classe de estirpe superior. É a propósito do convite para jantar de D. Emília Madruga, feito ao casal Policarpo, que o narrador nos descreve a habitação com os mais ínfimos detalhes: toda ela era branca, uma imitação vaga da casa minhota, com três pisos e muitas janelas pintadas de verde-azeitona, sendo o último um terraço, onde se situam os aposentos do casal e da filha Elfrida – personagem dotada de intervenção mínima na ação –, mas que vai ocupar alguma relevância na estrutura narrativa por funcionar como um impedimento à realização dos sonhos de Floriano.
A representatividade histórico-social desta família macaense é assinalada pela existência de um brasão a meio do jardim, por um portão de ferro forjado, escadaria de granito, reveladora de opulência e riqueza, e alpendre suportado por duas pedras também de granito. A porta de entrada de teca lavrada e uma aldrava na porta, à semelhança das casas senhoriais portuguesas, constituem símbolos de um elevado estatuto social e económico que se enaltece através da arte de bem receber de que a família fazia apanágio: “Isto aumentava-os em prestígio, pela maneira calorosa e hospitaleira como sabiam ser anfitriões. Uma vez penetrados nos domínios da casa, quebravam-se as distâncias de classe e ficava-se com a grata sensação que eram todos iguais.” 6
Através dos olhos extasiados dos Policarpos – Remígio, Glafira e Floriano – pouco habituados a tanto requinte e luxo, porque provenientes de uma classe mais baixa, é-nos dado conhecer o ambiente interior da sala dos Madrugas: sala vasta, com sofás e poltronas luxuosos e pesados, mesinhas que se espalhavam, ostentando ornamentos de porcelana valiosos; retratos a óleos, nas paredes, dos pais dos donos da casa; outros quadros de paisagens e naturezas mortas; uma falsa lareira com pratos da Companhia das Índias, colocados em cima; abatjours junto dos sofás e lustres de teto.7
A entrada na alta sociedade começava a esboçar-se e o tão desejado sonho de Elfrida e Remígio começava a concretizar-se, devido ao declarado namoro de Floriano e Elfrida Madruga.8
2. Construção das personagens e suas ambiências.
Consideramos os elementos das famílias protagonizadas – Policarpos e Madrugas – de personagens planas, por incidirem nos mesmos gestos e comportamentos, enunciarem discursos que variam pouco, suscetíveis de serem entendidos como marcas manifestadoras. Nesse sentido, revelam uma certa tendência para se identificarem com tipologias humanas de certa representatividade social. Na diegese, revelam-se previsíveis quanto ao seu comportamento, intermediando as ações e girando ao redor das personagens principais como seres complementares, dando suporte à continuidade da história.
2.1. Remígio Policarpo e Glafira
- “Repugnava-lhe dar o passo fatal para o casamento e assim se passaram alguns anos. Numa festa de Carnaval, encontrou Glafira, encantou-se com ela, com quem dançou praticamente toda a noite. Seis meses depois, com vinte e quatro anos e ganhando ainda modestamente no Tribunal, casou-se com ela.” 9
Remígio Policarpo e Glafira incorporam uma classe média com pretensões de ascensão social, através do casamento dos filhos. Como escrivão de Direito, Remígio é caraterizado como uma figura do Tribunal, trajando sempre de preto nas horas de serviço, estatura mediana, cabelo empoado de grisalho com ar austero. O narrador releva na sua educação, adquirida no Seminário de S. José, o domínio perfeito do português; o conhecimento do latim e francês; a aquisição linguística em inglês. Acentua no patuá o traço denotador de iliteracia, e ao chinês confere-lhe um estatuto de menorização por o considerar apenas necessário a uma comunicação elementar com os criados.
Focalizado como homem bom, caridoso e de magnífico coração no resgate de Leontina, vem posteriormente a ser caraterizado de covarde e fraco perante a obstinação da mulher em expulsá-la de casa. Na época existia um preconceito em relação às crianças enjeitadas, as bambinas, que eram recolhidas pelas madres canossianas – este preconceito é suportado através da oposição aguerrida dos elementos femininos desta família à protagonista. Salientamos a forma de apreciação do narrador sobre as mulheres da família Policarpo, nem deslumbrantes nem tão pouco inteligentes, descritas de acordo com o estatuto médio da classe social a que pertencem: Alzira, a filha mais velha da família tornou-se uma jovem obesa, sem cintura, nem elegância no andar e, mais ainda, preguiçosa. Feliciana, vistosa e vaidosa, com vontade de aprender, essencialmente o inglês, enlevava os pais que sonhavam para ela um casamento de conveniência com algum rapaz da Praia Grande para, deste modo, poderem frequentar os espaços e ambiências que lhe estavam interditos.10 Remígio era um homem ambicioso que mantinha um desgosto secreto, o de nunca ter sido convidado pelo governador para as festas do Palácio do Governo.
- “A prima Glafira fora uma desilusão, tão diferente (...) Cada vez mais magra e aguda, era irritadiça, consumida de ciúmes imaginários, corroendo a paz do marido.” 11
D. Glafira é formatada segundo os moldes de uma mulher de igreja que se dedica, em pleno, a várias obras assistenciais. De interesse referir que a sua instrução não foi além da terceira classe, visto na época ser prioritário a formação de boas donas de casa e “mães de família” para assegurar descendência e perpetuar os apelidos dos maridos.
Mulher de preconceitos, vivia sob o estigma de falta de beleza e de cultura, pois apenas falava o patuá, sentindo-se, por isso, inferiorizada. Vemos o seu comportamento social acompanhar a ascendência profissional do marido quer a nível de vestuário, quer a nível de postura física: “Quando o marido se elevou para a categoria de Escrivão de Direito, a mulher modificou-se. Fora do círculo íntimo dos parentes e dos amigos, passou a exigir o tratamento de D. Glafira. O pescoço tornou-se mais duro no cumprimento e melhorou na apresentação.” 12
Apesar dos esforços, Glafira não consegue atributos suficientes para ser apreciada no seio da comunidade macaense; teria de falar corretamente o português, mas apenas falava o patuá; tinha de possuir alguns atributos físicos e esta revelava uma magreza excessiva, uma vez que “Nem medicamentos, nem fortificantes ou mezinhas chinesas alteraram o seu perfil de “tábua andante.” 13
O narrador realça um aspeto negativo na religiosidade de Glafira: a falta de caridade em relação à criança enjeitada, evidenciando uma prática religiosa de ocasião, muito comum nos dias de hoje e de antigamente.
“Batem o peito diante dos altares e têm certamente calos nas rótulas de tanto ajoelharem. Você, Glafira, pratica ostensivamente a caridade, mas, pelos vistos, ela é só para o Governador e o Bispo verem.” 14
Seminário de S. José.
Neste contexto, é valorizada a palavra dada por Remígio ao filho Floriano; e a não cedência à execução da vontade da mulher e das filhas mostra um pouco da idiossincrasia do homem macaense. Senna Fernandes, através desta personagem, enobre- ce-o no empenho do cumprimento de promessas feitas:“– Prometo-te filho.”; “Se ninguém a reclamar, tenho direito para isso, não sairá desta casa que pode manter mais uma boca.” 15 Atos de honradez, caridade e amor ao próximo eram sintomas de bons princípios morais de que um macaense se orgulhava e que transmitia aos filhos. É através desses valores que Remígio convence as mulheres da casa, argumentando: “– Podia deixá-la neste estado de miséria e virar-lhe as costas? Que homem seria eu então?” 16
Deste modo, Leontina permanece no lar dos Policarpos de acordo com a promessa de Remígio ao filho, sob a condição de “crioula”, mas este facto não a vai impedir de ser maltratada e espezinhada, acabando por ser expulsa passados seis anos.
2.2. Sebastião e Emília Madruga
- “Sebastião e Emília Madruga, altos, entroncados, soberanamente chiques sem espalhafato, ele meio palmo mais alto, ambos emanando a força que a saúde e o dinheiro conferem.” 17
Ao representante de uma classe social elevada, de macaenses endinheirados, com prestígio e influência em Macau, Senna Fernandes traçalhe o perfil de uma forma muito singular: fisicamente com cinquenta anos, alto, entroncado, soberanamente chique sem espalhafato com nariz aguçado e boca prognata que se evidenciam negativamente num rosto harmonioso. Mas é na sua força de caráter que o narradorautor primazia, como convém a um perfil de aristocrata “(...) era um perfeito cavalheiro. Maneiras distintas, que lhe saíam naturais, afável com as senhoras que se deliciavam da sua palavra, bom conversador, genial no bridge e no póquer, aparentemente sempre bem-disposto, cultura amassada pela experiência e pela boa leitura, era um marco na sociedade local.” 18
Praia Grande.
O perfecionismo no domínio da língua portuguesa, adquirido através do Seminário de S. José; uma educação inglesa, adquirida em Londres e, finalmente o casamento com a bela e orgulhosa Emília Albuquerque, dos Albuquerque da Praia Grande, zona em que residia a classe mais fina da comunidade macaense, são traços relevantes de Sebastião Madruga. A acrescer o desprendimento de cargos e honrarias, porque o seu berço não exigia mais demonstrações de poder, como bem dizia a sua mulher: “– Nós somos. Os outros pretendem ser ou nunca serão.” 19
- “Não gozava de simpatias, o seu porte altaneiro, insuportável de soberba.”20
Emília Madruga aparentada com algumas casas fidalgas de Portugal, pertencia à aristocracia do bairro de
S. Lourenço. Descrita como perigosa no seu ódio, mas boa e generosa para quem gostasse, impunha-se perante as outras mulheres que a respeitavam pelo seu ar altaneiro e pela sua posição social. Ao contrário de Glafira, Emília era uma mulher culta, falava inglês, francês e tocava piano, falando apenas o patuá com as mulheres de Macau e o português com os metropolitanos. Glafira soube atrair as atenções desta aristocrata, fazendo-se notar pelo trabalho e eficiência no desempenho das funções relativas à paróquia de Santo António. Admitida no círculo restrito de Emília Madruga, Glafira torna-se seletiva na escolha das amigas numa atitude ofensiva, esquecendo as amigas de infância e de escola, com o propósito de ascensão no meio social e religioso.
Sem diferenciação de género, na sociedade macaense descrita em “Os Dores”, interessava a uma família de classe média a integração e aceitação numa classe social mais elevada que, por vezes, era conseguida através de laços de amizade ou de casamento entre filhos. Emília gostou de Floriano, do seu porte de gentleman, com qualidades e postura para furar barreiras e casar-se com a sua filha Elfrida. Por sua vez “No fundo, Remígio lisonjeava-se com aquela amizade, um trampolim para, mais dia, menos dia, se aproximar do grande Sebastião Madruga.” 21 E tudo era programado em função do prestígio social e ingresso na dita aristocracia da época.
3. Configuração de tipologias modeladas
Pelas suas potencialidades psicológicas, pela representatividade no universo diegético encontramos tipologias modeladas nas seguintes personagens: Floriano, Leontina e Lucas Perene. O fator mais distintivo destas personagens é o facto de elas se revestirem de complexidade suficiente para constituírem personalidades bem vincadas, às quais se dá relevo pela sua peculiaridade. A sua imprevisibilidade permite revelar gradualmente os seus traumas, vacilações e obsessões, que constituem os principais fatores da sua configuração.
3.1. Floriano
- “Falhara nas esperanças duma licenciatura, falhara na futura esposa ao aceitar uma noiva que, no fundo não desejava, como moeda de troca, e falhara na confiança e na ternura fiel dessa moça (…) e só tivera o defeito de ser pobre e filha de ninguém. Nitidamente, lembrava-se agora que jurara protegê-la.” 22
Aos onze anos de idade, é delineado com características psicológicas bem marcantes na sua personalidade. Vemo-lo atuar maduramente, durante as negociações com a velha chinesa no resgate de Leontina. A força psíquica e de carácter é visível através da forma como a mãe o admira e respeita. Sabe argumentar de forma convicta, falar ao coração e evocar a devoção de D. Glafira pela Nossa Senhora das Dores para a fazer fraquejar, na rejeição obstinada à crioula.
“Nós não somos gente sem coração, mamã. Somos pessoas de bem. A Nossa Senhora das Dores por quem a mamã tem grande devoção – as mais belas flores da casa ornamentam a sua imagem – não aprovaria certamente um ato tão cruel.” 23
E o esboço de herói romântico começa a definir-se, quando num gesto de carinho, Floriano lhe pega na mão peganhenta com o intuito de a confortar e proteger, surgindo a personagem que ocupará na obra um papel fulcral em relação à intriga. A atração do homem macaense pelas mulheres de traços orientais está bem configurada nesta passagem: “Examinando-a assim de perto, como prometia ser formosa! Lábios cheios, docemente simétricos, (…), malares suavemente salientes, olhos, quando abertos, de amêndoa grande. Rosto em oval, sobrancelhas arqueadas muito espessas.” 24
À semelhança das personagens masculinas desta obra, nomeadamente do pai, de Sebastião Madruga e de Lucas Perene, Floriano teve uma excelente formação, adquirida no Seminário de S. José, que sempre incutiu nos jovens uma forte ligação a Portugal: “Com onze anos apenas, já alimentava ambições. Uma delas era de ir estudar a Portugal, país de que os padres mestres tanto falavam exaltando o amor pátrio.” 25
Esse amor a Portugal, traço identitário dos macaenses, encontrado nos protagonistas masculinos, é defraudado perante a obstinação dos pais em casá-lo com Elfrida, a filha dos Madrugas, inviabilizando este anseio antigo: “– Deixemo-nos de romantismos. O melhor curso que podes tirar é casares-te com Elfrida Madruga.” 26 Dentro de Floriano ruiu o pedestal de nobreza e honestidade e o pai transformava-se num vendilhão que o vendia a ele, impulsionado pelas melhores intenções. A relação entre ambos foi afetada, criando-se um clima de mágoa e retraimento.
Salientamos que esta meta de vida dos jovens macaenses, a de irem para Portugal para se licenciarem é um denominador comum nas personagens masculinas de “Os Dores”. Encontramo-la em Lucas Perene, obstruída por oposição do seu pai; e em Remígio por falta de meios económicos, devido à morte do seu progenitor e à obrigação de angariar o sustento da família.
Floriano não luta pelos seus ideais, de cabisbaixo, perante o pai, conforma-se com o casamento de conveniência; também não reagiu, com medo de se denunciar, quando a mãe acusa injustamente Leontina de ter seduzido o irmão Marcolino: “O coração doía-lhe. Mas, com toda a crueza, a realidade era esta. Se ela não podia aspirar a mais, era melhor sair mais cedo que tarde demais.” 27
Por sua vez Remígio, para não contrariar a mulher Elfrida e ter paz em sua casa, faz cedências de que se sente culpado e “sente-se envergonhado pelo procedimento ignóbil”28 por ter consentido um tratamento injusto e empedernido em relação a Leontina. Destacamos nestas personagens a fraqueza e covardia por desistirem perante os obstáculos, aceitando os factos adversos como irreversíveis.29
3.2. Leontina
“Filha de ninguém, crioula rejeitada de uma casa farta, bambina de convento …” 30
Coloane.
São estes os ingredientes com que o narrador apresenta a sua heroína que ocupará sistematicamente a nossa atenção ao longo da diegese. Abandonada pelos progenitores e entregue a uma velha chinesa que habitava uma cabana perdida em Coloane, surge-nos, no início da narrativa, incrivelmente suja e esfarrapada, exibindo maus-tratos nas pernas e braços com chagas, quando descoberta por Floriano, após um dia de pesca.
O narrador debruça-se particularmente atento sobre estes elementos psicossociais que justificarão o comportamento futuro de Leontina, no que concerne à sua relação com os vários espaços e ambiências e irão constituir prova da sua centralidade cuja existência diegética se distribuirá por fases bem definidas.
- Na Calçada do Tronco Velho, nunca aceite, vive diariamente sob o estigma da rejeição, tendo alguma proteção de Floriano e Remígio que impediram que fosse enviada para a Casa de Beneficência. Através da configuração desta personagem, o autor dá-nos a conhecer uma questão de relevo da comunidade macaense do século passado – a de uma geração de “filhos da terra” desprovidos de ancestrais históricos, filhos ilegítimos, de mãe chinesa e pai Kuai lou, sem o passado identitário encontrado nos Policarpos ou Madrugas. As repercussões do fenómeno da ilegitimidade na sociedade encontram-se configuradas na atitude de Glafira e na secura de trato de Remígio, comportamentos denunciadores dos preconceitos da época.
- Apesar de sobrevivente numa casa hostil, o autor sobrevaloriza no desenho da sua heroína o traço principal da identidade macaense: a língua portuguesa. Primázia Crescência, prima de Glafira, “puxando pelos colarinhos da família” e argumentando que “era inconcebível que na casa de um escrivão de Direito existisse uma crioula-branca completamente analfabeta”31, conseguiu pô-la a falar e a escrever corretamente português, estabelecendo um contraste com as filhas da família. A reprimenda do puxão de orelhas, as vergastadas e a recomendação: “– Afasta-te do meu filho … Percebeste?” 32 não a impediram de viver com Floriano no coração; e na formação da sua personalidade, começa a esboçar-se uma mulher determinada.
- O desígnio de ir para a Casa da Beneficência das Madres Canossianas cumpriu-se. Devido a uma maldade de Marcolino, filho mais novo, de treze anos e estragado de mimos, tornou-se bambina ou “rapariga de convento” a palavra tão terrificamente tenebrosa com que foi amedrontada durante todos aqueles anos. Remígio entregou-a às madres sem um beijo ou o mais pequeno carinho, mas com um camuflado sentimento de culpa: “Encontrara-a abandonada e sozinha numa praia obscura e agora abandonava-a, também sozinha, a descartar-se duma responsabilidade, apenas para ter paz no seu lar e livrar um filho endiabrado de tentações pecaminosas.”33
- Saiu do convento aos dezasseis anos, mulher feita, de beleza acentuada e porte esbelto, mas amargurada e revoltada com uma sede de vingança que irá acentuar-se através do relacionamento com Lucas Perene, outro “filho da terra” com uma vida denegrida, ostracizado pela família e sociedade. O meio em que fica inserida, no final da narrativa, é um determinante para explicar o seu desejo de um ajuste de contas com Floriano e respetiva família, embora não materializado por a obra estar inacabada. Estas são as facetas da sua existência diegética suportadas pelas relações de afinidade e rejeição com o espaço em que foi inserida.
3.3. José Lucas Perene
“(…) filho desprezado, a quem o progenitor infligia monstras sovas com o grosso cinturão de couro, para dominar a sua rebeldia.”34
Numa outra situação, surge a focalização interna de Lucas Perene, filho de um funcionário das Obras Públicas e de uma mãe macaense da Taipa de personalidade fraca, marcado para sempre pelas memórias da agressividade do pai. O meio familiar surge na condição de determinante fundamental para explicar o seu comportamento.
Caraterizado de rapaz atraente e de feitio envolvente, o narrador referencia-lhe a mesma educação no Externato do Seminário de S. José, evidenciando mais uma vez o cariz da formação católica nas personagens masculinas. Como Floriano pretendia tirar um curso superior, desta vez no Estado da Índia, em Goa, por ser menos dispendioso do que em Portugal. A recusa do pai marca-o para o resto da vida, tal como ficou marcado Floriano. Enjeitado e odiado pelo pai, em virtude da tez escura da sua pele, e tratado de forma desigual em relação ao seu irmão mais velho, torna-se num ser rebelde, inconformado, de uma grande densidade psicológica, ocupando um lugar central a partir do capítulo XI. O pai, funcionário das Obras Públicas, ciumento em relação à mulher, espancava os elementos familiares, com exceção de Joaquim, o seu filho predileto, de tez clara como ele, em quem punha grandes expetativas.
A morte da mãe e o segundo casamento do pai são fatores determinantes para ser expulso de casa, tendo como principal pretexto a defesa da irmã Angélica, quando o pai a esbofeteava. Após estes indicadores, o autor integra-o num ambiente acentuadamente chinês, a nível de trabalho: um dos cais no Porto Interior e posteriormente na Capitania dos Portos.
Porto Interior.
O abandono de Evandolina, prometida de Joaquim, com quem se casara por hostilização ao irmão, vai conferir-lhe o traço acentuadamente identificador de rejeitado pela família e marginalizado pela comunidade macaense, porque apelidado de mulherengo e de outros vícios condenáveis.
E a sua inserção num cubículo, na Travessa de Sancho Pança, a dois passos do Hospital de S. Rafael, com cheiro a azedo e bafio, roupa suja espalhada por todo o lado, teias de aranha nas paredes, roupas e sapatos atirados pelo chão e muita poeira acumulada, denuncia modos degradados de uma existência socioeconómica – a de “homem sujo, camisola que fora branca, barba por fazer, ar decadente e arroto fétido.”35; e um espaço e ambiência não condizente a um filho da classe média que tinha uma certa educação e estudos, sendo o espaço configurado como uma projeção do estado da personagem.
III. RETRATOS IMPRESSIONISTAS DE ESPAÇOS E AMBIÊNCIAS
“Descrevo o meu Macau, o meu património, o que eu conheci. Só me lembro desta terra como ela era há anos atrás. Falo dela mantendo-a intacta no meu imaginário.”
In, O Olhar de Senna Fernandes:
Fragmentos, pág. 5
Macau antigo.
Senna Fernandes, ao estilo de uma montagem cinematográfica, por cenas ou quadros, descreve de forma fiel a realidade que observou quando criança mas, por outro lado, embeleza-a através da fantasia e da imaginação, tornando-a ainda mais fantástica – uma vez que considera que não basta descrever pormenorizadamente, mas também manifestar o sentimento sobre essa mesma observação. Os espaços e ambiências descritos são respeitantes a Macau, como refere, constantemente, o autor “Cantar Macau é a minha paixão”. Através do seu talento e sensibilidade pinta-nos autênticos quadros da sua terra e das suas gentes, com luz, cor, movimento, pois ele próprio considera a sua escrita como uma arte de pintar / filmar a realidade.
“Salgari teve muita influência em mim. (…) Escrevia um livro com muita facilidade, parece que eu estava a ver um filme. E esta minha maneira de escrever numa linguagem fílmica foi de Salgari, muito mais do que de Verne.”
In, Memórias e Testemunhos,
pág. 198
“Na infância, foi Salgari e na adolescência Júlio Verne (…) Marcaram a minha juventude autores como Aquilino Ribeiro, Eça de Queirós, Jorge Amado e Camilo Castelo Branco, de quem gostava especialmente.”
In, O Olhar de Senna Fernandes:
Fragmentos, pág. 11
No início da obra “Os Dores”, capítulo I, o narrador situa-nos numa tarde outonal de 1908, 15 anos antes do nascimento do autor e 105 anos antes da publicação desta obra. Os dezassete capítulos que a constituem são pródigos em descrições sobre ruas, avenidas e paisagens num emaranhar de factos verídicos e imaginativos, sempre num pulsar de vida e ritmo caraterístico de Macau de outrora, visualizadas através dos percursos efetuados pelas personagens e através dos olhos das mesmas. Através dos seus relatos coloridos e cheios de vida como só o autor sabe fazer, somos integrados numa viagem no tempo, tempo do início do século XX.
A atmosfera nas redondezas de Macau era de verdadeira acalmia com temperatura amena, arvoredo luxuriante e gorjeios de pássaros, um autêntico ambiente bucólico tão a gosto de Bernardino Ribeiro: “No ar, espalhavam-se os gorjeios da passarada. O resto, uma paisagem imóvel, escalavrada, pesadas rochas graníticas e vegetação maninha.” 36 Esta paisagem colocada ao olhar dos cinco passageiros de uma embarcação de pesca à linha é completada com a referência a um espaço territorial, que abrangia um canal entre as ilhas da Taipa e Coloane, atualmente desaparecido, e a enseada de Seak Pai Ván: “Recolhida a vela, a embarcação de recreio deslizou na enseada de Seak Pai Ván, para fundear na linha da praia, onde as águas subiam e desciam mansamente.” 37 Dentro da realidade sócio histórica, o autor refere um passatempo macaense da época, a pesca de nairos e asas amarelas, efetuado por Remígio Policarpo, o seu filho Floriano, José Lucas Perene, personagens fulcrais desta narrativa.
Com a entrada em cena de Leontina, personagem principal, e através do percurso de regresso até à Calçada de S. Agostinho, o leitor é levado a visualizar uma ambiência de fim de tarde, denotadora do sentir das personagens, fazendo convergir a sua maneira de agir com esse ambiente e, deste modo, propiciar o cumprimento da ação central. Assim, as personagens agem de determinada maneira porque o espaço lhes é favorável “diferentes espaços engendram diferentes atitudes” 37, configurando-se uma analogia entre o espaço e o estado de espírito.
“A tarde morria, a água do canal avermelhara-se com os doirados do crepúsculo. A vela enfunada impelia a embarcação para a frente, afastando-se da ilha, para sossego da tripulação.” 38
“Sob o embalo da água marulhenta e os estalidos da vela barriguda, cabeceou e adormeceu, totalmente à mercê daqueles que a conduziam. Assim se rumava o destino de uma vida.” 39
Calçada de Santo Agostinho.
Esse destino teve como ponto de partida o lar dos Policarpos, na Calçada de S. Agostinho. É através dessa localização e da curiosidade de Leontina em saber o que o que se passava para além do mundo restrito em que vivia, que o narrador nos descreve o movimento dessa rua – uma ambiência chinesa de onde extraímos uma fusão de impressões visuais, auditivas, olfativas com referência às tipicidades da cidade.
“Leontina sabia da sua existência, por algumas vezes espreitar o que se passava. Havia muitas pessoas que desciam por ela, pessoas variadas que não eram só os da casa. Ouvia os pregões matinais e nocturnos dos vendilhões ambulantes de canja e sopa de fitas, do padeiro de pão quente, do amolador de facas, do remendão de sapatos e do homem dos tin-tins.”40
E, quando Leontina sai de casa pela primeira vez, através da mão de D. Crescência, subindo a calçada para ir à missa, à igreja de S. Lou- renço, a focalização acentua-se não só em relação ao aspeto físico da zona, mas também a toda uma ambiência humana citadina. Através de “gradientes sensoriais”, em que Senna Fernandes é exímio, é de- monstrada a relação da protagonista com o espaço circundante, uma re- lação de total exclusão e de não pertença.
“Viu as lojas e as caras morenas dos “mouros”, ladeou de perto os ven- dilhões ambulantes, ouviu vozes, risadas, gesticulações dos transeuntes e ninguém se referia a ela. Espreitou o poço público perto da escadaria para a igreja, donde se tirava uma água cristalina.”41
Vendilhões.
A informação sobre Macau antigo prossegue, quando da expulsão de Leontina do lar dos Policarpos, como se de uma montagem de quadros impressionistas se tratasse, onde vemos gravados a memória do tempo perdido, a lembrança do autor sobre a terra que iria deixar de ser sua e que, por certo, iria perder a sua peculiaridade. Esta sucessão de quadros, de um realismo documental, está imbuída de um sentimento telúrico que produzem uma visão edénica da cidade e consagram a secular presença portuguesa em Macau. Os locais históricos vão desfilando durante o percurso de Leontina como marcas de uma identidade, referenciando-se os monumentos de cariz religioso, nomeadamente as igrejas, símbolos da identidade católica da comunidade macaense: igreja de St. Agostinho; de S. Lourenço; de S. Domingos; ruínas de S. Paulo e igreja de St. António.
Igreja de S. Lourenço.
O cenário que serve o percurso da Calçada de St.Agostinho para o Convento das Canossianas, junto do Jardim Camões, é pormenorizado até à exaustão pelos olhos da protagonista, espantada perante a visão de um mundo que sempre lhe fora interdito.
Para trás vai ficando a rua Central, a igreja de St. Agostinho e de S. Lourenço: de riquexó, o padrinho à frente e ela atrás, descem para a Praia Grande com grandes casarões e de pouco movimento, contornam o labiríntico bazar, entram no burburinho do Largo de S. Domingos. E, na passagem estreita pela rua da Palha, a descrição da ambiência humana prossegue, revelando mais um aspeto de um pitoresco dia-a-dia domingueiro. As inferências socioprofissionais detetáveis nesta descrição, conferem riqueza e dão dinamismo à narrativa, constituindo o cenário de uma realidade social do território, dos inícios do século XX.
Largo de S. Domingos.
Ruínas de S. Paulo.
Igreja de S. António.
Rua Central.
“(…) na apertada artéria, onde se atravancavam vendilhões de comidas, acepipes e fritos, penteadeiras com os seus apetrechos, o barbeiro e o dentista ambulantes, com as suas clássicas cadeiras de ofícios, riquexós aos gritos dos condutores e muito povo que ia e vinha nas compras nas lojecas e nos recantos da rua, ou a caminho do Mercado.” 42
E o contraste de ambiências inerentes aos espaços físicos de Macau é no- tado através da entrada do riquexó na calma rua de S. Paulo, para depois se visualizarem os casarões assobradados dos mamões de St. António, classe enriquecida através do comércio. Entre o cimo da Calçada do Botelho e o muro da igreja, aparece o Convento das Canossianas – o novo destino de Leontina – num largo sombreado que hoje é denominado “Largo de Camões”. A utilização dos adjetivos na descrição do edifício, confere uma analogia entre o espaço a habitar e os sentimentos a vivenciar nesse local adequado ao cumprimento da ação – ser bambina, ou seja uma enjeitada da rua, sem pai nem mãe e sem família.
“(…)deparou com um largo sombreado, todo ele dominado por um casarão enorme de fachada sombria e triste.” 43
Colégio das Canossianas.
Selara-se o destino de Leontina. E um novo percurso a partir do convento é delineado pelo autor, através dos passeios semanais das órfãs, para perpetuar zonas famosas de Macau tais como o Jardim Camões, a cem passos do convento; a Praia Grande; o Jardim de S. Francisco; o jardim Vasco da Gama; a Estrada da Vitória e o bairro da Flora – espaços físicos simbólicos que consagram, ao território, um passado português. O contraste entre a ambiência das órfãs e a das crianças dessas zonas, com aspeto de bem alimentadas e vigiadas por criadas, testemunha as diferentes identidades étnico-culturais e as consequentes relações entre espaço e vida social.
“Viam de longe as manifestações de riqueza, gente bem vestida, crianças bem alimentadas, vigiadas pelas criadas, outra vida que não a existência triste e confinada do convento.” 44
E a ambiência edénica de Macau continua a ser retratada, retrato que acompanha a vida de Leontina. Primeiro, quando da saída do convento, o narrador regista a impressão que a realidade provoca no espírito do protagonista, com destaque para a tipicidade das profissões, hoje extintas, devido ao crescimento habitacional e ao desenvolvimento económico, provocado pela indústria do jogo que não permitiu que as mesmas perdurassem até aos dias de hoje.
“O sol da manhã ofuscava, o amolador de facas gritava as suas virtudes de profissional, ao som dos ferritos do homem dos tin-tins ou ferros velhos. Acudiram ao chamamento vários riquexós desgarrados no Largo de Camões.” 45
Seguidamente, situa a heroína na rua do Hospital, relativamente perto da Rua do Campo, do Largo de São Domingos e do Senado. Nos seus passeios domingueiros com Eunice, o narrador fá-las deambular pelo Jardim Público de S. Francisco para ouvirem a música da Banda Municipal no coreto; visualizar as pessoas bem vestidas de outra classe social que frequentavam a casa de chá; descrever a Baía da Praia Grande, digna de destaque através da descrição do quotidiano nesse local. Nestes quadros citadinos, a realidade comum é retratada como uma linguagem bastante exata, porém de forma artística e numa tentativa de “figurar” o subtil estado de alma da personagem, associado aos estados subtis de uma ambiência envolvente.
“A Baía da Praia Grande recobriase de oiro e sol que declinava atrás da Ilha da Lapa. A água da enchente reverbava em cintilações resplandecentes, murmurava em soliloquies junto da muralha de granito, mas ao longe batia forte nas pedras extremas do fortim 1 de Dezembro. Juncos preguiçosos nos ancoradouros recolhiam as velas. Lorchas e sampanas balanceavam ao sabor da maré. Tancares diminutos, em labor incessante de vaivém, riscavam em tiras de espuma o manto esverdeado da água dos princípios de Setembro. Nos cais de pedra, em plano inclinado, desembarcava-se o pescado do dia, em cestas de vime.” 46
E a descrição minuciosa, captação sensível da realidade, continua como evocação de uma identidade macaense, expressa na cor local, na conclusão harmoniosa da história e nos elementos autobiográficos do autor para registo dos vindouros – edifícios simbólicos do tempo em que a cidade era administrada por portugueses. A personagem fica arrebatada com a contemplação da paisagem que desconhecia, porque tinha adquirido o sentido de pertença à terra, uma portugalidade incutida através do esmerado domínio do português e de uma educação culturalmente católica transmitida por D. Crescência e pelas irmãs canossianas.
Praia Grande e Penha.
“(…) a orla do casario da Praia Grande, em curva graciosa, duma ponta à outra, desde o Grémio Militar à arruinada Fortaleza do Bom Parto resplandecia, ornada de árvores frondosas (…) Identificou alguns edifícios, a ermida da Penha, o Hotel Bela Vista, o Palacete de Santa Sancha, o Palácio do Governo, o Tribunal, os contornos superiores da Igreja de S. Lourenço, do Seminário de S. José e da Sé Catedral.” 47
Num final de domingo, assistimos ao toque das trindades e ao final das atividades. O regresso a casa das gentes macaenses, demonstra uma sintonia entre o meio ambiente e aqueles que nele vivem: “A banda municipal tinha já terminado o seu concerto e o “picadeiro” esvaziara-se de gente.” 48; ajuda também à criação de atmosferas especiais de carácter identitário, dando informações sobre a religiosidade, traço destacável da comunidade.
Igreja de S. Lázaro.
“Abandonaram o Jardim, subiram depois a Travessa dos Anjos, para se separarem na Rua de S. Domingos (…) Quando rolavam os ecos dos sinos das Trindades da Igreja de S. Lázaro, entrou em casa.” 49
O ambiente serve como pano de fundo ao desenrolar dos acontecimentos fulcrais do ponto de vista da ação central. Assim, o narrador através do dia-a-dia de Leontina leva-nos a percorrer as ruas da zona cristã. Situa-nos na Rua da Palha, onde ainda, há pouco tempo, encontrávamos os carrinhos de linha, botões e tudo o mais relativo à arte da costura, para depois passar a descrever a fascinante ambiência desta rua concorrida, do início do século XX.
“(…) desfilavam os transeuntes apressados que se acotovelavam, os mendigos com choradas litanias, os vendilhões berrando à compita, o cheiro de alcaçuz, de cânfora e de ervas medicinais duma farmácia tradicional chinesa, o aroma de sândalo duma loja de pivetes, a zorra vergada de lenha que subia a caminho da Rua de S. Paulo” 50
Contígua à rua da Palha, a Rua dos Mercadores, aparece-nos também caraterizada como rua de grande movimento “Na Rua dos Mercadores, na hora buliçosa das três da tarde, a artéria cheia de transeuntes, ao parar diante do balcão da loja do vendedor de pato assado.” 51
O autor, através da descrição dos locais e das ruas da cidade, fornece elementos para entendermos a lógica do comportamento das personagens e, simultaneamente, localizar as atividades humanas, assim como os fluxos de pessoas, as mercadorias e várias informações que se conectam a esses lugares. José Lucas Perene pelo seu carácter híbrido é a personagem através da qual o autor nos dá outra visão do espaço e ambiência de Macau: a rua da Felicidade, com destaque do restaurante Fat Siu Lao, é descrita de forma aprimorada, relevando toda a boémia inerente a essa rua, denominada de “rua do amor”.
“Todo o burburinho, em baixo, da famosa artéria do amor trepava até eles. As vozes falsetes das cantadeiras no casario vizinho, os acordes lamentosos do alaúde e do pei-pá, os estalidos dos tamancos, os gritos dos condutores de riquexó e outras vozes, risinhos esparsos de mulher.” 52
O percurso efetuado por Leontina e Lucas Perene em espaços próprios da comunidade chinesa – a rua do Hospital, e a rua de Sancho Pança – completa o quadro sobre a toponímia de Macau com uma ambiência sui generis.
Ilha da Lapa.
“Da janela subiam os ruídos do tardoz da casa. Gorjeios e risada de criançada, vozes de mulherio em palreio fiado, alguém a soprar num trombone, em desconjuntado esforço de harmonia.” ; “Galos crocitavam na vizinhança, e das janelas vinha o ruído de uma rua calma, vozes esparsas e pregões de vendilhão de comidas.” 54
Os espaços marcadamente chineses de Macau são uma constante presença no discurso narrativo. O cais do Porto Interior aparece como refúgio de José Lucas. Neste local ganha a vida, isolando-se do resto da comunidade.
“O cais era dos mais movimentados do Porto Exterior; por ele passavam mercadorias, géneros alimentícios e contrabando que escapavam à fiscalização da polícia marítima. As ligações de exportação e importação com os portos fluviais da “terra china” circundante ativavam o cais, desde manhã cedo até a noite fora.” 55
E as referências à labuta marítima da personagem, desta vez na Capitania dos Portos, prosseguem para demonstrar como “o ser humano se relaciona com o espaço circundante através de seus sentidos”.
“Gostava do rio e do mar, do cheiro a maresia, dos acenos dos Pescadores dos juncos, da nostalgia dos longos e rubros crepúsculos que cobriam os cimos da Lapa e doutras ilhas circundantes duma auréola cegante e doirada.” 56
Segmentação do espaço em macro espaços
Macau antigo.
Em contraste com a vida citadina, aparece-nos outro tipo de espaço, que denominaremos de geográfico//territorial, acentuadamente bucólico possuidor de um passado histórico. A visão é um dos sentidos que o autor mais destaca nesta abrangência espacial, pois é através dela que as personagens o captam num máximo distanciamento. Atualmente, transformado pelas instituições governamentais que dão aval às realizações humanas, vários edifícios gigantes brotaram nas costas da Península de Macau, tapando a linha do seu horizonte.
“As raparigas do atelier aproveitavam para passeios à Montanha Russa, ao pinheiral da Guia, à aprazível estância da Flora de vivendas elegantes e fora de portas, espreitando o conjunto harmonioso do Palacete de Verão do Governador e o seu pejado de canteiros e de chafarizes. Ou então iam aos miradouros da Estrada de S. Francisco e da Estrada de Cacilhas, de calma idílica, contemplando os longes do mar mosqueado de juncos e ouvindo em baixo os murmúrios ou os regougos do mar, ao encontro de rochas escavaladas.” 57
Para o autor, a topo-análise também contempla analisar a posição em que os sentidos atuam na relação entre personagem e espaço. Nesta passagem percebemos a relação entre Leontina e a paisagem, perpassando os gradientes sensoriais num esquema de menor e maior distância respetivamente entre visão, olfato e audição. Entendemos, porém, que num texto literário, como na realidade, não há perceção de espaço que contemple apenas um dos sentidos. É a conjunção de gradientes sensoriais que faz com que se perceba o todo, formando assim infinitos efeitos de sentido.
“Era na contemplação da paisagem, sob a umbela das árvores de pagode e o cheiro da resina dos pinheiros, embalada pelo chilrear da passarada irrequieta que vinha à tona a dor pungente dos arcanos do coração.” 58
Dentro deste tipo de paisagem, surge-nos o Ramal dos Mouros, a Praia de Cacilhas como locais aprazíveis para um passeio e para a pesca, passatempo muito comum na época. E a influência da paisagem no estado de espírito da personagem central feminina é notória: ”A pureza do ar lavado dispersava a tristura, renovava o prazer de serem jovens.” 59
Visão e audição são sentidos importantes para a produção do significado espacial na narrativa de Senna Fernandes, dando ao leitor uma visão panorâmica dos macros espaços circundantes que constituem muitas memórias coletivas da cidade.
“Não se saciava da contemplação do mar pontilhado de revérberos do sol, dos juncos que singravam ao largo, rasgando sulcos broncos na massa líquida e movediça. As ilhas distantes azulavam a linha do horizonte. Por trás, algures, estava Hong Kong (…)” 60
Vemos que o Ramal dos Mouros era um local bem conhecido de Senna Fernandes pela forma pormenorizada como é descrito, como também outros locais circundantes, conhecidos do autor.
“O campo de ténis, não muito distante, ocultava-se por detrás da Cortina dos bambuais (…). Outro caminho dirigia-se para a zona militar interdita da Fortaleza de D. Maria II. Mais além estendia-se o morro pedregoso da resting de Macau-Seak, guardando os marulhos do mar das Nove Ilhas.” 61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta narrativa, publicada postumamente em 2012, revela-se como composição das reminiscências do autor, que recupera, retrata, inventa e reinventa espaços e ambiências de Macau situadas na primeira década de 1900.
Macau aparece retratado em microcosmos sociais onde as personagens e respetivas famílias são neles distribuídas segundo dois princípios de diferenciação: o económico e o cultural. A família Policarpo, pertencente a uma classe média, é situada junto à igreja de St. Agostinho, na Calçada do Tronco Velho; a família Madruga na rua do padre António, porque de estatuto social e económico mais elevado – Emília Madruga proveniente da aristocracia do bairro de S. Lourenço, próximo da Praia Grande; Leontina e Lucas Perene, amancebados, são inseridos na Travessa de Sancho Pança, numa zona tipicamente chinesa, porque marginalizados devido a atos ou ocorrências condenáveis aos olhos da comunidade.
De salientar que Angélica e Wai Hong têm como primeira residência a Rua da Erva, ruela perto do hospital chinês, para depois serem colocados como moradores na zona do Tap Seac, um bairro onde se misturavam as casas de famílias chinesas e portuguesas, de acordo com o seu status social.
Conforme a configuração das personagens apresentadas, detetamos traços marcantes da identidade macaense que consistem, essencialmente, numa formação académica e religiosa adquirida no Seminário de S. José; no brio e orgulho no domínio da língua portuguesa; na transmissão aos filhos de atos de honradez, caridade e amor ao próximo; numa forte ligação a Portugal que os padres mestres incutiam através do estudo; na prioridade de uma formação universitária adquirida na mãe pátria.
Os resultados do nosso trabalho demonstram que, neste romance, o enfoque não reside apenas nas personagens especiais, mas também na retratação da própria cidade que, com seus macro e micro-espaços, permite ser apontada como uma real protagonista. Além disso, realçamos também a influência recíproca entre sujeitos e espaço, destacando como os indivíduos podem ser afetados pelo espaço circundante. Portanto, este estudo não somente analisa o espaço literário no romance, mas discute seus efeitos e influências no comportamento e posição social das personagens.
Focamos aspetos da geografia, da toponímia, tais como a baía da Praia Grande, o Largo Camões, Jardim de S. Francisco, Calçada de St. Agostinho e, sobretudo, do ambiente humano e paisagístico que tão bem Senna Fernandes soube eternizar.
Bibliografia
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DIMAS, António. Espaço e Romance. 2ª ed., São Paulo: Ática, 1994, pág. 20.
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Ibid., págs.29-31.
Ibid., págs. 33-34.
Ibid., pág. 108.
Ibid., ibidem.
Ibid., pág. 113.
Ibid., pág. 29.
Ibid., pág. 30.
Ibid., pág. 39.
Ibid., pág. 29.
Ibid., pág. 30.
Ibid., pág. 22.
Ibid., pág. 26.
Ibid., pág. 22.
Ibid., pág. 108.
Ibid., ibidem.
Ibid., pág. 93.
Ibid., pág. 92.
Ibid., pág. 94.
Ibid., pág. 121.
Ibid., pág. 22.
Ibid., pág. 50.
Ibid., pág. 31.
Ibid., pág. 105.
Ibid., pág. 53.
Ibid., pág. 68.
Idem, ibidem.
Ibid., pág. 210.
Ibid., pág. 37.
Ibid., pág. 47.
Ibid., pág. 58.
Ibid., pág. 186.
Ibid., pág. 202.
Ibid., pág. 15.
Ibid., pág. 57.
Ibid., pág. 21.
Idem, ibidem.
Ibid., pág. 39.
Ibid., pág. 40.
Ibid., págs. 57-58.
Ibid., pág. 58.
Ibid., pág. 64.
Ibid., pág. 73.
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Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
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Ibid., pág. 87.
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Ibid., pág. 174.
Ibid., pág. 171.
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Ibid., pág. 142.
Idem, ibidem.
Ibid., pág. 152.
Ibid., pág. 154.
Ibid., pág. 158.