Macau e os territórios lusófonos

– uma colecção iconográfica única

no Arquivo Histórico de Macau

João M. Loureiro

 

 

As origens de uma colecção

Quando em Outubro de 1970 visitei pela primeira vez Macau, ainda estudante do terceiro ano de Direito e no âmbito de uma viagem promovida pelo Círculo de Estudos Ultramarinos, estava longe de supor que a minha ligação ao território se iria prolongar de modo permanente e tão particularmente intenso nas duas últimas décadas. O “Notícias de Macau” de 13 de Janeiro de 1971 publicou, na sequência dessa visita, um artigo meu denominado “Portugal no Extremo Oriente”, onde abordei a história do relacionamento multisecular luso-chinês na pequena península localizada nos mares do sul da China.

 

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 Largo do Leal Senado – Macau – C. 1960

 

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Funeral de Lou Lim Ioc – Macau – C. 1927

 

Desde então não mais deixei de me interessar e de seguir os assuntos de Macau, com o mesmo gosto com que acompanhava a evolução e as perspectivas da então África portuguesa, em especial Angola, onde viria a iniciar a minha vida profissional dois anos mais tarde. Recém-formado concorri em 1972 ao Ministério Público ultramarino e fui colocado em Malanje, cidade atraente das terras férteis do planalto nordestino, e durante o período do serviço militar desempenhei, em acumulação, as mesmas funções na capital da província cafezeira do Uíge (então designada por cidade de Carmona). Aqui vivi os primeiros meses da guerra fraticida e anárquica que antecedeu a transição de Angola para a independência, com privações de toda a espécie, mas sobretudo com a incomensurável desilusão de conviver não só com mortes, desaparecimentos e êxodo, mas também com o ruir do sonho de um país livre, pacífico e multirracial.

Regressado a Lisboa nos princípios de Novembro de 1975, compreendi poucos anos depois que em Portugal existia, de forma dispersa, uma valiosa e imprescindível fonte da história do nosso país e dos novos países de língua oficial portuguesa: os postais fotográficos que, desde os fins do século XIX, nos revelavam as imagens das cidades e das vilas, das actividades económicas, dos povos e das culturas das antigas províncias africanas e asiáticas. Nos alfarrabistas e feiras de coleccionismo de Lisboa e arredores apareciam, com bastante frequência, álbuns de postais antigos ou exemplares avulsos que testemunhavam, de forma significativa, e por vezes inédita, o passado recente de tais territórios.

Comecei então a coleccionar, e com o tempo a pesquisa estendeu-se a outros mercados coleccionistas europeus, com especial destaque para uma notável “Carte Expo” que se realiza duas vezes por ano em Paris, congregando coleccionadores e comerciantes de todo o mundo.       

Assim reuni uma vasta colecção sobre o Ultramar Português, que cedo superou em quantidade e abrangência as existentes nas bibliotecas e arquivos portugueses e lusófonos.

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 Banco Nacional Ultramarino – S. Vicente, Cabo Verde – C. 1935

 

Tudo começou em Macau

A colecção teria permanecido encaixotada e desconhecida se não fosse Macau! Em 1995, um grande amigo dos tempos descomprometidos da juventude e então membro do governo do território, teve a iniciativa e a responsabilidade de promover a primeira exposição da minha colecção e, na sua sequência, patrocinar a edição do meu primeiro álbum “Postais Antigos de Macau”. Jorge Rangel, actualmente presidente do Instituto Internacional de Macau, foi portanto o grande impulsionador do posterior desenvolvimento da colecção e da notoriedade que viria a ter.

Não é possível visualizar integralmente os espaços, os instrumentos e as personagens da história recente de Portugal em terras tropicais de África e do Oriente, que se concretizam e potenciam a partir dos finais de oitocentos, sem recorrer às imagens dos postais fotográficos. A colecção que reuni sobre os países e territórios que formaram o antigo ultramar, tem como limite temporal o ano de 1975, altura em que se completaram os processos de independência conferidos pela terceira república portuguesa. Só Macau ficou em aberto até Dezembro de 1999, data em que ocorreu a transferência da administração portuguesa para a República Popular da China.

Através dos exemplares que a integram é possível rever as cidades e as povoações, os edifícios públicos e religiosos, as plantações e as roças, as actividades comerciais e os mercados, as pontes e os caminhos-de-ferro, os tipos humanos e os costumes, e ainda revisitar acontecimentos de relevo, tais como as operações militares no sul de Angola no princípio do século XX ou a viagem do Príncipe D. Luís Filipe às colónias, a proclamação da República em Cabo Verde ou Moçambique e a primeira feira industrial de Macau em 1926. Afigura-se-me portanto que a dimensão e âmbito desta colecção a posicionam como uma importante fonte das histórias contemporâneas não só de Portugal mas também dos diversos países e territórios de língua oficial portuguesa.

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 Vista Aérea – Bissau, Guiné – C. 1957

 

Esta mesma conclusão tem sido corroborada por diversos historiadores que a ela acederam, directa ou indirectamente através das exposições e edições dela derivadas. Limito-me aqui a transcrever duas dessas opiniões. O Professor Francisco Bethencourt, do King’s College de Londres e então Director do Centro Cultural da Fundação Gulbenkian em Paris, considera que se trata de “... uma colecção única cuja consulta João Loureiro tem tido a generosidade de facultar aos investigadores. Na nossa opinião é impossível trabalhar sobre as antigas colónias portuguesas nos séculos XIX e XX sem utilizar este acervo de imagens”. René Pélissier, um dos maiores especialistas sobre a história da África de expressão portuguesa, designou-a de “monumento único”. “É verdadeiramente impressionante e ridiculariza as modestas – e outrora por vezes inacessíveis ao historiador estrangeiro – colecções oficiais existentes em Portugal.... O trabalho colossal de João Loureiro marca uma viragem capital na recolha de iconografia colonial, não só no antigo império português mas em todas as restantes colonizações. ... Os oito grandes volumes publicados por João Loureiro constituem uma colecção iconográfica que não tem concorrentes em todo o mundo, quer pelo número de páginas e de imagens apresentadas quer pela sua variedade e interesse documental”. As imagens que acompanham este breve artigo são por si bastante elucidativos de tudo quanto se referiu sobre o valor do postal como fonte incontornável da história.

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 Uma rua da cidade – S. Tomé e Príncipe – C. 1930

 

Tudo ficará em Macau

A colecção de 10.800 postais fotográficos que reuni ao longo de duas décadas, que baseou a edição de dezassete álbuns temáticos e a realização de exposições em Macau, Goa, Lisboa, Paris e Maputo, foi recentemente adquirida pelo Arquivo Histórico de Macau. Esta instituição designou uma equipa técnica que se encontra a proceder à sua reorganização assente em critérios de metodologia arquivística, que tenho acompanhado e que estou seguro que facilitarão de sobremaneira a sua consulta e acesso por académicos e pesquisadores. “Macau e os territórios lusófonos” – assim se rebaptizou a colecção –constituirá com toda a certeza uma referência imprescindível na iconografia dos PALOPS e territórios do Oriente.

A minha decisão de a enviar para Macau tem a ver com uma reflexão prévia que fiz sobre os seus possíveis destinos. Não desejava de todo que, por minha morte, a colecção fosse poupada nos primeiros tempos, depois esquecida e mais tarde alienada porventura de forma displicente. Queria sentir-me confortável por, com lucidez e critério, poder garantir a sua integridade e acessibilidade por quem se interessasse pelos seus conteúdos. Ora é indubitável que a China, através de Macau, está a apostar fortemente no desenvolvimento do seu relacionamento com os países e territórios lusófonos contemplados no acervo de imagens que reuni.

Para o justificar plenamente basta recordar que em 2013 assinalou-se o décimo aniversário do estabelecimento do Forum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Oficial Portuguesa, sendo que esta plataforma de contactos não prescinde de quaisquer valências ligadas ao saber e ao conhecimento sobre as suas áreas de actuação.

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 Vista parcial – Luanda, Angola – C. 1965

 

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 Vista parcial – Lourenço Marques, Moçambique – C. 1910

 

A RAEM ficará assim a dispor, através do seu Arquivo Histórico – actualmente integrado no prestigiado Instituto Cultural de Macau – de uma colecção iconográfica única, sem paralelo em outros arquivos congéneres. E para mim, que a iniciei e expandi, é com enorme orgulho e alegria que a vejo ficar sedeada numa instituição de excelência cuja Directora, a Dra. Lau Fong, desde o primeiro momento entendeu integralmente o seu significado e valor. Ficará assim no singular e fascinante território de Macau a colecção que criei e consolidei ao longo de duas décadas. Oxalá dela se possam aproveitar e beneficiar todos os que se interessam pelo passado e pelo futuro do mundo ímpar da lusofonia.

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Palácio do Governador – Pangim, Goa – C. 1925

 

 

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Caçando um crocodilo – Timor – C. 1960

 

 

NOTA: Edições desta colecção disponíveis no Instituto Internacional de Macau, na plataforma IIM BOOKSHOP: Clicar neste link para acesso desta colecção no IIM Bookshop


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