Principais Festividades Tradicionais da Comunidade Macaense
Alexandra Sofia Rangel
Investigadora académica, autora do livro
“Filhos da Terra – A Comunidade Macaense, Ontem e Hoje”
Dia 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, celebrado em Macau
A forma como uma comunidade se organiza e participa colectivamente em festas e festividades, revivendo as suas tradições ou assinalando datas com especial significado, constitui também um elemento identitário que importa assinalar.
A comunidade macaense habituou-se, ao longo da sua história, a participar muito activamente em festividades, quer portuguesas, quer chinesas. Ainda hoje, quase duas décadas depois da transferência do exercício da soberania, em Dezembro de 1999, é assim, tanto no território, como na diáspora macaense.
Os feriados oficiais incluíam, na vigência da administração portuguesa, datas respeitantes a grandes acontecimentos nacionais portugueses, festividades tradicionais chinesas e também festas da Igreja Católica. Após a transição, foram eliminados os feriados respeitantes a altos momentos históricos portugueses, tendo sido, porém, mantidas algumas das festas religiosas cristãs, que têm especial significado para a comunidade macaense, como a Páscoa, o Dia da Imaculada Conceição e o Natal.
Em outros tempos, sensivelmente até meados do século XX, também foi amplamente participado, pela comunidade macaense, o Carnaval, o que tornou a cidade de Macau diferente das outras daquela área geográfica:
Em épocas passadas, Macau ria a bandeiras despregadas. Vestia-se de fantasia e andava pelas ruas, cantando, galhofando, palhaçando, em gestos e atitudes de truão.
Baile de Carnaval nos anos 50 do século XX.
Os sons alegres das tunas e os risos festivos do rapazio explodiam em melodias ensaiadas durante muitas semanas e em gargalhadas estridentes, provocadas muitas vezes pela visão das máscaras, engraçadas e originais.
(…)
As festas carnavalescas punham uma nota viva, interessante e chistosa no viver pacato e monótono de Macau (Machado 2002: 147-150).
As festividades chinesas que mais atraem os macaenses são o Ano Novo Chinês, o Festival do Barco Dragão e o Festival de Outono. Para os chineses de Macau, são também importantes o Ching Ming (Dia do Culto dos Antepassados), o Dia do Buda e o Chong Yeung (Dia dos Antepassados), sendo de registar que o culto dos antepassados é celebrado duas vezes por ano. São festas móveis segundo o calendário lunar.
Apesar de já não serem feriados oficiais, duas datas continuam a ter o maior significado para a comunidade macaense: o 10 de Junho, Dia de Portugal, e o 24 de Junho, antigo Dia da Cidade de Macau, a data em que a população de Macau se defendeu com sucesso do último ataque dos holandeses, em 1622. As novas autoridades escolheram para Dia da Região Administrativa Especial de Macau o dia 20 de Dezembro, data do seu estabelecimento, cujas celebrações contam também com o envolvimento de instituições da comunidade macaense.
Para este estudo, foram identificadas quatro datas particularmente relevantes para os macaenses: o Ano Novo Chinês, o 10 de Junho, o 24 de Junho e o Natal.
Baile de Carnaval nos anos 50 do século XX.
Ano Novo Chinês
Devido ao grande entusiasmo com que é celebrado pelo grupo dominante da população de Macau, o Ano Novo Chinês faz parte da vida de qualquer macaense. Sendo a maior de todas as festas realizadas na China e na vasta diáspora chinesa, também os macaenses a comemoram, mesmo quando residentes no estrangeiro. É impossível sair à rua nesta altura sem assistir às celebrações, cheias de cor e movimento, que incluem danças do leão e do dragão, exposições artísticas e de flores, banquetes, espectáculos musicais e a queima quase incessante de panchões.
Uma tradição do Ano Novo Chinês é a oferta de lai-si, pequenos envelopes vermelhos contendo dinheiro, que são dados por pais a filhos, patrões a empregados e casados a solteiros. Os macaenses também participam neste costume, e a entrega de lai-si é tão popular entre eles que costumam oferecê-los nos aniversários dos filhos, netos e sobrinhos. Os lai-si têm, muitas vezes, decorações lindíssimas, com desenhos muito diversificados, tornando-se em objectos muito apreciados, sendo mesmo coleccionados por crianças portuguesas e de outras nacionalidades, atraídas pelo seu exotismo.
As donas de casa, chinesas e macaenses, compram ramos de pessegueiro e narcisos para decorar a casa, assim como arranjos florais elaborados, imitações de panchões e papéis e dísticos vermelhos para afugentar os maus espíritos.
Outra tradição é jogar nos casinos, em busca da sorte neste período auspicioso para todos. Muitos habitantes e turistas chineses vindos de Hong Kong, Taiwan ou do continente chinês enchem estes locais de jogos de fortuna e azar, e dão à cidade uma imagem de alegria e prosperidade económica, participando, activamente, nos festejos e adquirindo as guloseimas, flores, roupas, brinquedos e outros artigos habitualmente consumidos nesta ocasião. Mesmo os menos afortunados procuram usar roupas novas e integram-se completamente neste ambiente de festa.
Exemplo de “lai-si”.
Nesta altura do ano também os serviços, os escritórios, as obras públicas e muitas casas comerciais cessam completamente a actividade durante vários dias. Até os pescadores, com as suas embarcações embandeiradas, recolhem ao porto de Macau e vêm para terra.
Outro hábito salutar é o pagamento das dívidas até à véspera do Ano Novo Lunar. Nenhum homem de negócios, por uma superstição que a todos favorece, transfere para depois dessa data qualquer das suas dívidas, o que é, de facto, muito benéfico para a economia local.
Cada novo ano é referido a um animal do zodíaco chinês. Leonel Barros, em Macau – Coisas da Terra e do Céu, explica assim esta lenda:
Uma lenda muito antiga contava que Buda resolveu chamar à sua presença todas as espécies de animais que existiam na Terra, a fim de lhes dar conselhos no que dizia respeito ao modo como teriam que lidar com os homens.
De todos os animais existentes na Terra só compareceram doze: o tigre, o dragão, o cavalo, o carneiro, o galo, a serpente, o rato, o boi, o coelho, o macaco, o cão, e o porco.
Grato com a presença desses animais, Buda determinou que para cada ano fosse designado um dos doze animais. Assim, cada ano passou a ser conhecido por um dos doze animais do zodíaco chinês divididos em dois grupos, em conformidade com os elementos da teoria dualística da criação, base da concepção chinesa do Universo (...) Pertencem ao ramo Yang – elemento viril e activo – o tigre, o dragão, o cavalo, o carneiro, o galo, e a serpente (…) No ramo Ying – elemento feminino passivo – englobam-se o rato, o boi, o coelho, o macaco, o cão, e o porco (Barros 1999: 73-74).
Com toda a sua carga simbólica e o seu significado, esta é e será, provavelmente, sempre a maior festa chinesa, que nem regimes mais autoritários conseguiram suprimir ou limitar:
São tradições milenares que resistem ao tempo e às mudanças, não se deixando vencer por vanguardismos de qualquer cor política ou por modas, sempre passageiras. Na China, nem o regime comunista nas suas mais demolidoras fases conseguiu modificar hábitos e ritos de antanho ligados às festividades do Ano Novo. Chamando-lhe Festa da Primavera ou dando-lhe outro nome, essas festividades continuaram no dia-a-dia da vida do povo chinês e os altos dirigentes políticos voltaram a conviver em lautos banquetes nesses dias de festa, que acabaram por ser oficialmente aceites como comemorativos do Ano Novo Lunar. E, não obstante as grandes transformações verificadas, esta é e será sempre, também, a maior de todas as festas da população de Macau (Rangel 2009: 50).
10 de Junho
O busto de Camões no jardim dedicado ao Poeta.
O Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas tinha no tempo da administração portuguesa um significado especial para os macaenses, pois, como refere Henrique de Senna Fernandes,
Camões, no coração dos macaenses, foi sempre o símbolo da Pátria distante. Esta convicção não era apenas alimentada pela romagem anual à Gruta, onde diante do Busto do Poeta desfilaram gerações de estudantes. (…) era costume presentear-se a todo aquele que ingressasse, pela primeira vez, no Liceu, com um volume de “Os Lusíadas”. Eu recebi o meu. Na mesma época, quando as escolas primárias eram da responsabilidade do Leal Senado da Câmara, era costume premiar o melhor aluno finalista, em cerimónia simples mas cheia de significado. O prémio que lhe depositavam nas mãos, era também um volume de “Os Lusíadas” (Fernandes 1999: 60).
Esse significado estendeu-se para além da transição. De facto, Luís de Camões representou para sucessivas gerações de macaenses a sua ligação a Portugal, da qual nunca se esqueceram apesar da enorme distância entre Macau e a então Metrópole. Nos dias que correm, mesmo havendo facilidade em viajar de Macau para Portugal, Camões continua a simbolizar para muitos de nós as nossas origens, o nosso passado e o país que é a nossa segunda casa.
Luís de Camões tem um grande jardim em Macau com o seu nome, onde se situa a famosa Gruta de Camões, contendo o seu busto. A primeira romagem à Gruta foi feita em 1923 por iniciativa do então Governador de Macau, Rodrigo Rodrigues, “(…) um patriota exaltado e fervoroso cultor de Camões (…) que logo no primeiro ano da sua chegada a Macau convidou as escolas e as forças armadas para irem à Gruta homenagear o épico. (…) foi ele que enalteceu o vulto imortal do poeta e a sua emoção foi tão profunda que desatou a chorar, tendo de interromper o discurso” (Teixeira 1999a: 67-68). Ainda hoje, todos os anos, instituições de matriz portuguesa, nas quais se incluem associações macaenses, e escolas de Macau, incluindo, como não podia deixar de ser, a Escola Portuguesa de Macau e o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, continuam a participar na cerimónia do 10 de Junho, desfilando perante o busto do maior poeta português e colocando flores no respectivo pedestal. Alunos da Escola Portuguesa de Macau e da Escola Secundária Luís Gonzaga Gomes declamam sonetos de Camões em, respectivamente, português e cantonense e grupos de danças e cantares actuam no local.
Reza a tradição que Camões terá escrito parte de Os Lusíadas nesta Gruta. No entanto, a partir do século XIX, foram-se levantando vozes contrárias, pondo em causa até a passagem de Camões por Macau. Mas o Padre Manuel Teixeira, respeitado historiador que viveu em Macau, comenta que “Os que negam a estada de Camões em Macau baseiam-se no argumento do silêncio do poeta sobre Macau, alegando que Macau não existia. Se isto fosse verdade, tudo aquilo que ele não mencionaria não existiria” (Teixeira 1999b: 21). Nas suas obras A Gruta de Camões em Macau (Teixeira 1999a) e Camões esteve em Macau (Teixeira 1999b) ele refuta essas opiniões, apresentando factos e excertos de documentos que deitam por terra os argumentos contrários à estada de Camões em Macau, o que não foi difícil, uma vez que os textos dos contestadores estavam repletos de erros históricos, erros que eles foram copiando uns dos outros, demonstrando uma ignorância sobre os primórdios da história de Macau (Teixeira 1999b: 65-78).
Contudo, o que interessa aos macaenses não é a polémica criada à volta da estada de Camões em Macau, mas sim, como já foi referido atrás, o que o poeta representa para a comunidade:
Macau só tem que se orgulhar de ter sido a primeira possessão ultramarina portuguesa a erigir um busto a Camões. Antes mesmo da capital do Império!
Porque se não estivera em corpo, o espírito do Poeta, em cá chegando, nunca de cá saiu! Por aqui ficou a impregnar cada um dos descendentes dos portugueses que partiram em demanda de honra e proveito, na Índia e mais além, mesmo muito mais além da Taprobana…
E disso, todas as gentes de Macau, de espírito aberto e ecuménico, neste pluriculturalismo que está na sua génese, devem estar orgulhosas. Porque, na obra de Camões, já encontramos a concepção globalista do mundo baseada no encontro entre duas culturas diferentes, que é justamente o que está na base do estabelecimento de Macau. Camões é a chama que nos une, é o símbolo da simbiose do Ocidente com o Oriente (Ribeiro 2007: 26)
Um busto de Camões já se encontrava na Gruta em 1794, pois é mencionado por Sir George Staunton no diário de viagem da Embaixada de Lord Macartney à China em 1792-1794 (Teixeira 1999a: 67).
Dito isto, vem a propósito relembrar algumas das referências que um dos maiores escritores portugueses, dos raros que tiveram contacto directo com o Extremo Oriente, Camilo Pessanha, fez à Gruta de Camões e à permanência do vate em Macau, em “Macau e a Gruta de Camões”, incluído na compilação Camões nas Paragens Orientais – Textos por Camilo Pessanha e Venceslau de Morais:
Quanto à grandeza gigantesca de Camões, e à da assombrosa epopeia marítima que culminou na formação do vasto império português do século XVI, estão acima de qualquer discussão. Resta apenas ponderar se Macau, esta exígua península portuguesa do Mar da China ligada ao distrito chinês de Heong-Shan, tem qualidades que a recomendem para assim andar associada à memória dessa epopeia e à biografia do poeta sublime que a cantou.
Ora essas qualidades tem-nas Macau como nenhum outro ponto do Globo. Macau é o mais remoto padrão da estupenda actividade portuguesa no Oriente nesses tempos gloriosos. (…)
É a Gruta de Camões (…) esse lugar sobre todos prestigioso dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem, há-de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau (…) (Pessanha 1927: 13-15).
24 de Junho
Macau foi sempre um ponto estratégico nas rotas comerciais, o que gerou a cobiça por parte dos holandeses no século XVII, como afirma Austin Coates:
Os Holandeses cedo chegaram à conclusão de que o lucro do comércio com o Japão dependia da quantidade de seda chinesa disponível, e cujo monopólio Macau detinha, satisfazendo amplamente a insaciável procura japonesa. Assim, restava-lhes apenas a seda que iam obtendo dos piratas chineses, a intervalos irregulares, e sempre após longas e difíceis negociações.
Gerou-se, pois, no seio dos Holandeses um crescente movimento de apoio àqueles que propunham a conquista de Macau pela força (Coates 1991: 76).
Em período de União das Coroas da Península Ibérica, os inimigos de Espanha passaram a ser os mesmos dos portugueses e, estando Filipe III de Espanha “(…) naturalmente mais interessado em salvaguardar as colónias fundadas pelos Espanhóis que em dar resposta aos pedidos de reforços lançados pelos Portugueses” (Coates 1991: 73), nada fez para contestar a constituição de Companhias das Índias Orientais por parte dos ingleses e holandeses, estes últimos especialmente interessados nas colónias portuguesas.
A primeira investida dos holandeses deu-se em 1601. Como a cidade ainda não estava fortificada, entraram facilmente, mas a população rapidamente os deteve, acabando esta primeira tentativa de ocupação com o enforcamento de dezoito holandeses e a retirada dos seus barcos (Coates 1991: 74). Seguiram-se mais tentativas de tomar Macau, mas as hostilidades terminaram temporariamente com o Tratado de Antuérpia em 1609, decretando tréguas entre a Holanda e a Espanha (e, por consequência, Portugal). Neste período foi desenvolvido um plano de defesa em Macau e construíram-se fortificações militares:
É desta época que datam os fortes da colina da Barra, à entrada do Porto Interior (a sul da península), bem como outros dois fortins, construídos nas duas extremidades da Praia Grande, para controlo do Porto Exterior.
Os preparativos da cidade mobilizaram toda a população, incluindo os Jesuítas. Com efeito, toda a área ocupada pelos seus jardins e edifícios no cume do monte foi integralmente coberta por espessa muralha (que ainda hoje ali se ergue), fazendo-se a comunicação com o Colégio e a Igreja de São Paulo, que lhe eram adjacentes, por uma passagem secreta.
Foi também estabelecida uma fundição, cujo mestre era Manuel Bocarro, peça importante (se bem que ignorada) na transformação das tradições bélicas do Extremo Oriente, com os seus magníficos canhões (comprados por todos os países da região), bem como com outros artefactos (os melhores do género produzidos em toda a Ásia) (Coates 1991: 75-76).
Todos estes preparativos provaram-se essenciais, já que, findo o período de tréguas, os holandeses atacaram Macau outra vez em 1622. Os confrontos tiveram início em 23 de Junho, com fortes bombardeamentos sobre a cidade, que se encontrava desguarnecida, pois a maioria dos soldados estava fora a auxiliar tropas chinesas. Por consequência, “(…) só cerca de mil pessoas se encontravam na cidade, e, dessas, apenas oitenta europeus estariam aptos a pegar em armas” (Coates 1991: 77).
A batalha continuou no dia seguinte, 24 de Junho, dia de São João Baptista, com mais bombardeamentos e o desembarque dos holandeses. Austin Coates relata:
(…) a escassa população de Macau – leigos e clérigos, homens livres e escravos – ergueu-se para a defender. Os Jesuítas rapidamente desalojaram os canhões dos seus postigos originais, posicionando-os ao longo da muralha norte do seu seminário-fortaleza. Refira-se a propósito que os padres jesuítas eram peritos em balística, habituados que estavam a lidar com a corte de Pequim (…).
Neste embate brutal era grande a escassez de armas e homens que as manejassem, especialmente numa ocasião em que a defesa mais eficaz residia na intensidade e na frequência do fogo de artilharia. Mas tal deficiência veio a ser compensada pela pontaria certeira de um padre-soldado. De facto, quando o inimigo se acercava já do sopé do Monte, o padre Rho começou a disparar o seu canhão, cujas balas caíram certeiras sobre os carroções que transportavam a pólvora da força holandesa, que rebentaram com estrondosa explosão. (…)
O grito de batalha lusitano, “Por Sant’Iago!”, brotou a certa altura de um qualquer peito, sendo um segundo depois gritado em uníssono por todas as gargantas, como em uníssono avançou a multidão, inspirada por uma força comum, caindo de todos os lados sobre o invasor holandês. (…) A coberto da mais intensa fuzilaria, a vanguarda portuguesa enfrentava já o inimigo em luta corpo a corpo. (…) O comandante da força invasora foi o primeiro a cair, após o que o resto das tropas holandesas, perdendo de vista o seu líder, vacilaram por completo. Momentos depois, tomados de pânico, batiam em retirada, desfazendo-se das armas, acossados pelos Macaenses, que os perseguiam pelos campos trespassando com as espadas tantos quantos podiam. Uma mulher africana, vestida de homem, matou dois deles com uma forquilha (Coates 1991: 77-78).
Após a estrondosa derrota dos holandeses, decidiu-se comemorar todos os anos o Dia de São João Baptista como agradecimento e recordação deste feito importante na história de Macau, algo que foi feito ao longo de quase quatro séculos, celebrado como o Dia de Macau até 1999. No entanto, apesar de já não ser feriado, os macaenses não se esquecem desta data e, todos os anos, através das suas associações com sede no território ou no estrangeiro, continuam a comemorar este dia com uma missa e um chá gordo, mantendo em pleno o seu significado para a comunidade.
Há datas que são marcos fundamentais de qualquer comunidade. O 24 de Junho é uma data inapagável da memória macaense: “A vitória de 24 de Junho de 1622, sobre os invasores holandeses, marca um dos mais brilhantes feitos do povo de Macau e um imorredoiro padrão nas tradições desta Cidade do Nome de Deus” (Machado 2002: 137).
Sendo uma data específica relacionada com a história de Macau, é opinião generalizada na população que não deveria ter sido retirada dos calendários oficiais após a transição de administração.
Monumento que assinala a vitória sobre os holandeses em 1622.
Natal
Convívio de Natal.
A comunidade macaense é tradicionalmente católica, uma herança dos pais portugueses de tempos de outrora, e vive numa cidade repleta de igrejas e capelas, algumas existentes desde os primeiros tempos do estabelecimento de Macau. Renelde da Silva justifica a religiosidade dos macaenses da seguinte forma:
Face à sua pequenez numérica num ambiente de omnipotência política da vizinhança e do relativo abandono da Metrópole, os macaenses aprenderam a contar consigo próprios, para enfrentar as situações difíceis, por que tiveram de passar.
Para além das suas forças, só podiam contar com Deus. Daí a sua religiosidade (Silva 2001: 94).
Como para muitos outros católicos, para os macaenses, o Natal é uma festividade muito importante e amplamente participada. Mas nunca foi só uma festa de família, pois foi sempre vivido também com intensidade em estabelecimentos de ensino, em organismos associativos, em empresas, em serviços públicos e em instituições de solidariedade social (Rangel 2007: 319).
O escritor macaense Henrique de Senna Fernandes descreve assim o Natal no seio da sua família:
O Dezembro era um mês festivo. O primeiro domingo era dedicado à Primeira Comunhão, uma cerimónia tocante na Sé Catedral (…).
Logo a seguir, vinham os preparativos para o Natal, as donas de casa atarefadas na cozinha, na confecção do aluar, dos coscorões, empadas e fartes, os costumados doces da época. Encomendavam-se o peru e outras carnes de Hong Kong e, em casa do meu Avô materno, não podia faltar o empadão gelatinado de peças de caça, o famoso “game-pie” do Lane Crawford. Encomendavam-se também à Loja de Omar Moosa, mais conhecido por Kassam, figura prestigiosa e mais destacada da larga comunidade “Moura” de Macau (…).
A “missa do galo” desse tempo, o jantar de Natal, o deslumbramento dos brinquedos, a mesa repleta de iguarias, onde se comia à tripa forra, a alacridade e as gargalhadas dos familiares, ainda se repercutem na minha saudade. Os dias seguintes até os Reis, com quebra do dia do Ano Bom, eram dedicados a amigos e conhecidos (Fernandes 1999: 65).
Outro autor dá-nos o seu testemunho deste modo:
À missa do galo iam as famílias católicas, a que se seguia a ceia e o ansiado momento de abertura das prendas. As festas prolongavam-se no dia de Natal, com almoço e jantar especialmente confeccionados para a ocasião, onde não faltavam o peru e outros pratos escolhidos pelas donas de casa, elas próprias quase sempre excelentes cozinheiras.
Apesar das grandes modificações operadas nas últimas décadas, muitas destas tradições mantiveram-se. A quadra festiva também era e é aproveitada para familiares se reencontrarem e para cada um se lembrar dos amigos, separados pela distância e pelo tempo (Rangel 2006: 278).
Eis um outro sugestivo relato de um velho residente, José Silveira Machado, originário dos Açores e ex-professor da Escola Comercial Pedro Nolasco, ao relembrar o seu primeiro Natal em Macau:
Ainda hoje recordo essa noite de festa e de emoções, que me deu a oportunidade de vir a conhecer, ao longo da minha vivência em Macau, a forma tradicional e muito especial como os macaenses preparavam e celebravam esta data tão festiva.
Católicos por tradição, convicção ou devoção, na senda dos hábitos e costumes que os missionários, navegadores e comerciantes para aqui trouxeram das terras de Portugal, punham um carinho muito especial nas comemorações do nascimento do Menino de Belém. (…)
À noite todos se preparavam para assistir à Missa do Galo, enchendo-se de fiéis todas as igrejas da cidade e das ilhas, que, em noites de frio, se embiocavam em agasalhos grossos, porque não havia meios de transporte para os resguardar da inclemência do tempo. (…)
Terminada a Missa e o beija-pé ao Menino, regressavam todos a casa para a consoada em família, em que tomavam parte alguns parentes ou amigos mais chegados.
O que se fazia em primeiro lugar, era acender as velas e rezar diante do presépio e pedir graças para toda a família, presentes e ausentes.
Vinham então para a mesa grande perú, capão, presunto e todas as outras iguarias que faziam a delícia de todos (…) (Machado 2002: 139-140).
Devido à proximidade de Hong Kong, certos hábitos ingleses natalícios foram adoptados por algumas antigas famílias macaenses, como apagarem-se as luzes quando se serve o tradicional Christmas Pudding (pudim de Natal), em chamas, no Dia de Natal. Festa universal, comemorada de forma muito idêntica por milhões de pessoas, o Natal tinha e tem as suas especificidades próprias no seio das velhas famílias macaenses.
Bibliografia
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